A origem do termo Dinâmica de Cismogênese

 tirado das páginas 215 a 235 de NAVEN de Gregory Bateson



CONTRASTE ETOLÓGICO, COMPETIÇÃO E CISMOGÊNESE


A discussão precedente do contraste entre o ethos dos homens e o das mulheres no povo iatmul levanta imediatamente o problema de como tal contraste é produzido e mantido. A primeira teoria que nos vem à mente é a de que indivíduos dos dois sexos, devido a diferenças fisiológicas genéticas e profundas, podem tender a desenvolver padrões diferentes de personalidade, e que as diferenças de ethos entre os dois sexos são simplesmente uma expressão dessas diferenças inatas. Mas, mesmo evocando a hereditariedade, não podemos excluir a influência da cultura e do ambiente. 

O assunto é confuso e difícil. As duas teorias extremas – a) de que o contraste etológico é inteiramente determinado pela cultura, e b) de que o contraste é inteiramente determinado pela fisiologia sexual e pela hereditariedade – são ambas insustentáveis. A primeira deve ser abandonada porque conhecemos consideráveis diferenças fisiológicas e físicas inatas existentes entre os sexos: diferenças de forma, massa corporal, concentração de gordura, velocidade de desenvolvimento e assim por diante. Essas diferenças se expressam necessariamente no comportamento dos indivíduos – no gesto, na postura, na escolha de atividades etc. – e, portanto, têm de contribuir para o contraste etológico. 

Além disso, a teoria que atribui o contraste inteiramente à hereditariedade não é válida, por várias razões. Mesmo se estivéssemos lidando com diferenças físicas entre os sexos em uma comunidade qualquer, surgiria a questão de o quanto essas diferenças físicas são culturalmente exageradas ou modificadas por costume ou deformação. No caso de diferenças psicológicas, a probabilidade de modificação cultural é ainda maior.

Pode-se provavelmente encontrar alguma teoria que afirme uma diferença biológica fundamental de temperamento entre os sexos em qualquer comunidade na qual os ethos dos dois sexos sejam diferenciados. Em nossa própria cultura, com sua extrema confusão e diversidade de ethos, é usual atribuir-se quase qualquer característica de uma personalidade ao sexo biológico. Sob o termo womanliness1 [“feminilidade”], subsume-se uma síndrome de características – calor materno, expressão emocional espontânea, beleza pícnica e assim por diante – comparável ao ethos feminino iatmul. Mas o termo femininity [“feminidade”] é usado para uma síndrome muito mais próxima ao orgulho-masculino-iatmul, súbita volubilidade, teimosia, e beleza leptossômica. 

Mais significativas, todavia, que as formulações confusas de nossa própria cultura, são as descobertas da dra. Margareth Mead2. Ela demonstrou que entre os Arapesh, que habitam as montanhas ao norte do Sepik, entre esse rio e a costa, um ethos uniforme é padrão para ambos os sexos; e que entre os Mundugumor, que vivem em um tributário do baixo Sepik, tampouco encontra-se contraste no ethos sexual. Mas enquanto entre os primeiros o ethos de ambos os sexos é, ainda que mais suave, vagamente reminiscente daquele encontrado entre as mulheres iatmul, o ethos de ambos os sexos entre os Mundugumor é uma versão mais áspera e menos exibicionista do ethos dos homens iatmul. Por último, a autora trabalhou entre os Tchambuli, descobrindo ali um contraste entre os ethos dos dois sexos. Esse contraste não era, todavia, idêntico ao que descrevi para os Iatmul. O ethos dos homens tchambuli era menos áspero e mais exibicionista do que o dos Iatmul, ao passo que as mulheres tchambuli eram um tanto mais duras e práticas do que as mulheres iatmul. À luz dessas descobertas, se quisermos sustentar uma teoria da diferença inata de temperamento entre os sexos, seríamos obrigados a supor que a constituição genética dos indivíduos é, estatisticamente, bastante diferente em cada uma das quatro tribos mencionadas. 

Na medida em que há diferenças físicas entre esses povos, e uma probabilidade de que essas diferenças sejam geneticamente determinadas, é concebível que possam existir diferenças no temperamento inato. Mas podemos dizer, ao menos, que as diferenças não se devem a peculiaridades da fisiologia sexual, uma vez que qualquer um desses ethos pode ser o padrão para qualquer um dos sexos. As diferenças, sejam ou não sexuais, teriam de ser descritas em termos mendelianos, mas não conheço nenhum padrão de herança mendeliana que nos permitiria construir populações com diferenças ou similaridades estatísticas proeminentes tais como as que ocorrem nas quatro tribos descritas. 

Somos assim forçados a adotar uma posição intermediária entre essas duas teorias. Não podemos excluir inteiramente seja a hereditariedade, seja o ambiente social, e seria prematuro indicar a forma exata da teoria intermediária que devemos adotar. Neste capítulo, visto que o material coletado não é de natureza suscetível a uma análise genética, e uma vez que não realizei medições físicas, devo restringirme à investigação dos fatores sociais e culturais envolvidos na conformação da personalidade, deixando aberta a possibilidade de que características temperamentais, como as referidas pelos termos ciclotimia e esquizotimia, sejam hereditariamente determinadas e provavelmente independentes do sexo. 

É possível, por exemplo, que as populações das quatro tribos mencionadas sejam estatisticamente similares em características temperamentais, e que em cada população e em cada sexo ocorram indivíduos nascidos com uma inclinação natural para os vários ethos. Se isso pudesse ser demonstrado, teríamos então de supor que alguns indivíduos, em qualquer cultura, seriam naturalmente mais adaptados para a vida naquela cultura do que outros, e que em cada cultura existiriam desviantes genéticos que fariam o melhor possível para se adaptar a um ethos cuja tendência é pouco desenvolvida em seu temperamento. Seríamos, todavia, ainda obrigados a reconhecer que tendências genéticas desempenhariam um papel muito importante na formação da cultura, uma vez que as características inatas dos “tipos preferidos” teria guiado a cultura em sua evolução. 

Com esse preâmbulo, podemos nos voltar para os fatores culturais que promovem o ethos de cada sexo na cultura iatmul. Quando estava entre eles, a definição do próprio conceito de ethos era para mim muito vaga, além do que não tivera nenhum treinamento ou experiência prática no estudo da moldagem de seres humanos e especialmente de crianças. Não dispunha, portanto, do material para descrever esses processos entre os Iatmul em qualquer nível de detalhe; minhas observações não são mais que sugestões referentes ao modo como os processos podem se combinar. 

Minha impressão é de que não existe diferença marcada entre o tratamento de bebês meninos ou meninas; não encontrei tampouco qualquer sentimento mais forte de que os bebês de um sexo fossem mais desejáveis do que os do outro. Em geral, crianças de ambos os sexos aparentam ser felizes e bem tratadas; raramente, pareceme, são deixadas sozinhas por longos períodos. Um detalhe merece menção: nessa cultura, as crianças são conspicuamente ornamentadas com conchas, mesmo na vida cotidiana (cf. Ilustração 17A)3. Eu costumava usar no pulso uma presa de porco circular (comprada em Sydney) e descobri que o empréstimo desse objeto branco brilhante, um óbvio ornamento, era invariavelmente eficaz em sustar o choro de crianças pequenas de ambos os sexos, pelo menos por alguns minutos. 

Creio que devemos buscar as origens do ethos sexual contrastante dos Iatmul não nas experiências da primeira infância, mas no treinamento posterior dos meninos e das meninas. Devemos ver os dois ethos como adquiridos pelo aprendizado e pela imitação, mais do que como brotando de peculiaridades implantadas no inconsciente profundo durante os primeiros dois anos de vida. 

No caso dos meninos: a preocupação de seus seniores com a caça de cabeças e com a produção de exibições espetaculares; sua vida na casa cerimonial de brinquedo, onde macaqueiam seus seniores; os processos que analisamos em nosso estudo da iniciação (pp. 178 e seguintes); a primeira experiência de homicídio do menino, quando ainda criança, transpassando algum pobre cativo amarrado, enquanto seu wau o ajuda a levantar a lança; o elaborado naven, do qual o menino é imediatamente feito herói – todos esses fatores, sem dúvida, contribuem para transformar os meninos em homens iatmul. 

De modo similar, o ethos das mulheres é sem dúvida formado, em parte, por sua preocupação com as rotinas de obter comida e cuidar das crianças e pela associação das meninas com mulheres mais velhas que já adotaram o ethos. 

Pode-se presumir que todos esses fatores desempenhem seu papel na manutenção do status quo, mas, além deles, creio, estamos, nos mecanismos subjacentes ao contraste etológico, diante de outros fatores que, se não fossem refreados, levariam a mudanças na norma cultural. Inclino-me a ver o status quo como um equilíbrio dinâmico, no qual mudanças estão continuamente tendo lugar. De um lado, processos de diferenciação tendendo a um incremento do contraste etológico e, de outro, processos que continuamente contrariam essa tendência à diferenciação. 

Referi-me aos processos de diferenciação como cismogênese4. Eles têm, acredito, ampla significância sociológica e psicológica, e portanto, em minha descrição desses fenômenos, utilizarei como ilustração não apenas os parcos fatos que coletei na Nova Guiné, com base nos quais o conceito de cismogênese foi inicialmente construído, mas também observações, não menos rudimentares, da ocorrência de cismogênese em comunidades européias.

Definirei cismogênese como um processo de diferenciação nas normas de comportamento individual resultante da interação cumulativa dos indivíduos. 

Por ora, não precisamos nos preocupar em definir a exata posição desse conceito em relação às várias disciplinas que tentei distinguir. Penso que, em lugar disso, devemos estar preparados para estudar a cismogênese de todos os pontos de vista propostos – estrutural, etológico e sociológico –; e, além deles, é certo que a cismogênese desempenhe um papel importante na moldagem dos indivíduos. Inclino-me a ver o estudo das reações dos indivíduos às reações de outros indivíduos como uma definição útil do conjunto da disciplina a que vagamente me referi como psicologia social. Esta definição serviria para conduzir o tema para longe do misticismo. 

Faríamos bem, penso, em não falar mais em “comportamento social dos indivíduos”, ou em “reações dos indivíduos à sociedade”. Esses modos de expressão levam muito facilmente a conceitos como o de Mente Grupal ou Inconsciente Coletivo. Tais conceitos são para mim praticamente desprovidos de significado, e acredito que mesmo os evitando permanecemos suscetíveis ao erro se confundimos nosso estudo dos processos psicológicos do indivíduo com o estudo da sociedade como um todo – uma confusão de esferas de relevância. 

Quando nossa disciplina é definida em termos das reações de um indivíduo às reações de outros indivíduos, torna-se imediatamente aparente que precisamos considerar a relação entre dois indivíduos como passível de alterar-se no tempo, mesmo na ausência de perturbações externas. Temos não apenas de considerar as reações de A ao comportamento de B, mas ir adiante e considerar como estas afetam o comportamento posterior de B e o efeito disso sobre A. 

Muitos sistemas de relacionamento, seja entre indivíduos, seja entre grupos de indivíduos, contêm uma tendência para a mudança progressiva. Se, por exemplo, um dos padrões de comportamento cultural, considerado apropriado no indíviduo A, é culturalmente rotulado de padrão assertivo, enquanto de B se espera que responda a isso com o que é culturalmente visto como submissão, é provável que esta submissão encoraje uma nova asserção, e que essa asserção vá requerer ainda mais submissão. Temos então um estado de coisas potencialmente progressivo, e, a não ser que outros fatores estejam presentes para controlar os excessos de comportamento assertivo ou submisso, A precisará necessariamente tornar-se mais e mais assertivo, e B se tornará mais e mais submisso; e essa mudança progressiva ocorrerá, sejam A e B indivíduos separados ou membros de grupos complementares. 

Podemos descrever mudanças progressivas desse tipo como cismogênese complementar. Mas há um outro padrão de relacionamento entre indivíduos ou grupos de indivíduos que contém igualmente os germes da mudança progressiva. Se, por exemplo, encontramos a bazófia como padrão cultural de comportamento em um grupo, e o outro grupo responde a isso com mais bazófia, uma situação competitiva pode se desenvolver na qual a bazófia leva a mais bazófia, e assim por diante. Esse tipo de mudança progressiva pode ser chamado cismogênese simétrica5. 

À luz dessa consideração teórica das possibilidades, fica claro que precisamos considerar os diversos contextos da cultura iatmul para determinar o quanto a cismogênese simétrica ou a complementar contribuem para a conformação das normas culturais. É possível que o contraste no ethos sexual seja de um tipo suscetível à cismogênese complementar? 

Vimos que as mulheres formam uma audiência para as performances espetaculares dos homens, e sem dúvida constatamos que a presença de uma audiência é um fator importante na conformação do comportamento dos homens. De fato, é provável que os homens sejam mais exibicionistas porque as mulheres admiram suas performances. Reciprocamente, o comportamento espetacular constitui um estímulo que atrai audiência, promovendo nas mulheres um comportamento complementar apropriado. Podemos perguntar, também, o quanto o sistema de comportamento que, como um todo, envolve flautas, wagans e outros segredos iniciatórios seria mantido, se não fosse pelo fato de que as mulheres ouvem e admiram a música das flautas e os ritmos dos wagans. 

Mas o contraste entre exibicionismo e admiração é apenas uma parte do contraste sexual geral, que inclui todo um nexo de características inter-relacionadas, e seria muito importante saber o quanto esse contraste mais amplo tende para a cismogênese. O único detalhe que posso mencionar no sentido de mostrar a ocorrência de tal cismogênese na cultura iatmul é a reação dos homens diante da viúva entoando sua nênia, da qual eles realizam uma caricatura mordaz. Infelizmente, não conheço a reação da viúva a essa caricatura. 

A cismogênese complementar é evidente, outra vez, nos contextos iniciatórios – o processo de inculcar o ethos masculino nos noviços. Já analisei esse processo em detalhe tanto quanto permite o material (p. 181). Indiquei como os iniciadores com um ethos iatmul-masculino reagem à presença de noviços com um ethos (supostamente) iatmul-feminino [womanly]: a presença dos noviços estimula os iniciadores a um comportamento desabrido e fantástico. Mais tarde, os próprios noviços tornam-se iniciado
res e são cismogenicamente movidos pela presença de novos noviços para um comportamento iatmul-masculino. O ethos admirativo das mulheres também é ativo em produzir a assimilação dos noviços ao grupo dos homens; os noviços são ornamentados e exibidos para as mulheres ao fim da iniciação. 

Finalmente, um caso curioso e possivelmente factício de cismogênese complementar pode ser notado no ato em que o laua se vangloria na presença do wau, o qual se humilha em resposta. 

A cismogênese simétrica não é evidente entre os sexos, embora ocorra de maneira dramática na iniciação. Aqui, temos metades rivais competindo uma contra a outra no molestamento dos noviços, e estimulando-se mutuamente a novas brutalidades (pp. 182-183). 

A cismogênese não se restringe, em absoluto, à cultura iatmul, e para enfatizar a importância do processo que identifiquei primeiro entre eles indicarei em que outros campos espero reconhecer tal fenômeno.
 

1. Em todas as relações íntimas em pares de indivíduos. Uma boa parte dos desajustes no casamento é hoje em dia descrita em termos da identificação do cônjuge com um dos pais. Essa formulação pode ser historicamente acurada: pode ser verdade que o marido transporte, no casamento, para sua relação com a esposa, atitudes previamente formadas em seu relacionamento com a mãe. Mas esse fato, por si mesmo, não é de maneira alguma suficiente para o rompimento do casamento, e é difícil explicar em termos de tal teoria por que tais casamentos, em seus estágios iniciais, são, com freqüência, muito satisfatórios, e apenas mais tarde tornam-se fonte de miséria para ambos os parceiros. 

Se adicionarmos, porém, a essa formulação diacrônica do relacionamento a possibilidade de que os padrões de comportamento entre os parceiros sejam suscetíveis à mudança progressiva de natureza cismogênica, é evidente que temos uma teoria que explicaria não só por que a relação é satisfatória em seus estágios iniciais, mas também por que seu rompimento parece inevitável para as pessoas envolvidas. A relação entre filho e mãe é, em nossa cultura, uma relação complementar6, na qual, nos estágios iniciais, o padrão é proteção por parte da mãe e fragilidade do lado da criança. Mais tarde, o relacionamento pode desenvolver-se de várias maneiras: por exemplo,

a) o padrão de proteção e fragilidade pode persistir; b) o relacionamento pode evoluir para o padrão que notamos entre os Iatmul, no qual a mãe têm um orgulho vicário por sua prole; ou c) pode evoluir em direção a um contraste assertivo/submissivo no qual uma ou outra das pessoas assume o papel assertivo. Mas, qualquer que seja o padrão, a relação mãe/filho é quase sempre complementar. Se esses padrões são transportados para o casamento do filho, é provável que se tornem ali o ponto de partida de uma cismogênese que destruirá o casamento. 

Talvez valha a pena sugerir que, em muitos casos, uma explicação e demonstração, para os parceiros em tais casamentos, da cismogênese em que estão envolvidos, possa ter o mesmo efeito terapêutico que a compreensão, por parte do marido, de que ele está identificando sua esposa com sua mãe. 

2. No desajustamento progressivo de indivíduos neuróticos e pré-psicóticos. Eu próprio não tenho experiência em psiquiatria, mas suspeito que o psiquiatra ganharia se, além de estudar a patologia individual em cada caso, prestasse mais atenção nas relações que o desviante tem com aqueles que o cercam. Discuti esse assunto com o dr. J. T. MacCurdy, que concorda comigo que, em muitos casos, o crescimento dos sintomas do indivíduo paranóide pode ser atribuído a relações cismogênicas com os que lhe são mais próximos. Pelo que sei, é comum descobrir que aqueles paranóides que construíram suas ilusões em torno da crença na infidelidade de suas esposas quase invariavelmente têm esposas cuja fidelidade é óbvia para todos em volta. Aqui, podemos suspeitar que a cismogênese toma a forma de uma expressão contínua de ansiedade e suspeita da parte do marido, e contínua resposta a isso da parte da esposa, de maneira que ela, seja continuamente zombando dele ou contradizendo-o, está promovendo seu desajuste, e ele, por sua vez, tornando-se mais desajustado, dela demanda respostas cada vez mais exacerbadas. 

No caso do desajuste esquizóide, a situação não é tão clara. Sugeri acima que, na cultura iatmul, o ethos circular das mulheres e o ethos esquizotímico dos homens são mutuamente complementares, e suscetíveis à cismogênese. Se isso é verdade – maiores observações seriam necessárias para verificá-lo –, precisamos estar preparados para aceitar o fato de que o esquizofrênico não está meramente exercitando sua própria patologia interna, a qual pode, com efeito, estar ou não se agravando, mas que ele está também respondendo a pessoas mais ciclotímicas em volta, tornando-se mais e mais esquizóide. Essa visão da degeneração progressiva do esquizóide explicaria, de maneira simples, a extraordinária inevitabilidade dessa degeneração, e explicaria, também, o fato de que o próprio paciente se vê freqüentemente preocupado com idéias de predestinação, em um grau tal que essas próprias idéias acabam por contribuir consideravelmente para sua destruição. É possível que, se um indivíduo esquizóide puder ser levado a perceber, nos estágios iniciais, que o processo progressivo que ele vê como inevitável é, na verdade, muito simples e facilmente controlável, e que pode ser detido. 

Mas resta muito trabalho a ser feito na classificação das várias síndromes agrupadas sob o título de “esquizotimia”. A partir do material iatmul, fica claro apenas que o contraste entre os homens e as mulheres é de certa maneira comparável àquele entre um tipo de esquizotimia e o comportamento circular. É provável, porém, que exista um bom número de padrões de cismogênese complementar em cada um dos quais um parceiro seja, no fim das contas, impelido a distorções esquizóides de sua personalidade, e que uma classificação desses vários padrões emparelhados nos forneça uma chave para a classificação das síndromes esquizóides. Além disso, a compreensão dessas síndromes em termos das cismogêneses em que emergem pode nos fornecer pistas para seu tratamento nos estágios iniciais. 

Nos estágios posteriores da esquizofrenia parece provável que a personalidade do paciente veja-se permanentemente mutilada, e uma compreensão da cismogênese que levou a esse colapso seria possivelmente desprovida de utilidade terapêutica. 

É provável que a cismogênese seja um fator importante na neurose assim como na psicose, e que uma nova disciplina de psicanálise possa ser construída nessas bases, suplementando os sistemas hoje em uso. Na análise freudiana, e nos outros sistemas que derivaram dela, há uma ênfase sobre a visão diacrônica do indivíduo, e a cura em grande medida depende de induzir-se o paciente a ver a vida nesses termos. Fazse com que ele perceba que sua miséria presente é resultado de eventos que tiveram lugar há muito tempo, e, aceitando isso, ele pode descartar seu sofrimento como derivado de causas irrelevantes. Mas também deve ser possível fazer com que o paciente veja suas reações àqueles que o cercam em termos sincrônicos, de modo que ele perceba e seja capaz de controlar a cismogênese entre si e seus amigos. 

Pode ser que enquanto para certos pacientes a administração de uma visão diacrônica tenha efeitos curativos, para outros esse tratamento venha tão-somente a acentuar seu desajuste. Para estes últimos, é possível que a administração de uma visão sincrônica seja curativa e forneça-lhes um entendimento realista e completo de si mesmos. Os perigos da psicanálise quando administrada a pacientes esquizóides podem com efeito brotar simplesmente da preocupação que esses pacientes têm com o destino e a inevitabilidade de acidentes históricos. Um senso de processo presente talvez constitua um corretivo necessário a um senso hiperdesenvolvido de história pessoal, e vice-versa. 

Acredito que valha a pena procurar por fênomenos de cismogênese em casos de personalidade múltipla. Aqui temos duas formas de cismogênese para considerar: primeiro, uma provável cismogênese entre o paciente e seus amigos; segundo, uma possível cismogênese no interior da personalidade do paciente. É possível, de fato, que uma metade da dupla personalidade promova a outra, e vice-versa, produzindo uma distância cada vez maior e fazendo, incidentalmente, com que cada metade da personalidade se torne cada vez mais incapaz de um comportamento adaptativo ao ambiente social do paciente. 

Em que medida essa cismogênese no interior da personalidade está presente em todos os indíviduos envolvidos em uma cismogênese externa é uma questão que não pode, por ora, ser respondida, mas é provável que possamos ver, no desenvolvimento do orgulho vicário e sua expressão em gestos de auto-abnegação, fenômenos relacionados com aqueles da múltipla personalidade. É também provável que devamos ver o exibicionismo e o narcisismo como fenômenos estreitamente inter-relacionados. O homem iatmul que corteja a admiração das mulheres por meio de um comportamento exibicionista está quase certamente admirando sua própria performance, com metade de sua personalidade: uma cismogênese externa pode induzir a um narcisismo interno. 

O dr. MacCurdy sugeriu dois outros contextos em que a ocorrência de cismogênese é provável, a saber, o comportamento de pacientes maníacos e os acessos de raiva das crianças. Os sintomas de mania aumentam enormemente na presença de uma audiência; e as respostas dos pais podem acentuar os acessos de seus filhos. 

Não basta, porém, fazer uma lista dos contextos em que a cismogênese ocorre, e seria um equívoco supor que, na palavra cismogênese, temos a chave de todos os processos de formação de caráter. Para que este conceito tenha valor real, é preciso que estimule a investigação das condições das quais depende a cismogênese. Entre estas, podemos observar que a cismogênese é impossível a não ser que as circunstâncias sociais sejam tais que os indivíduos concernidos se vejam mantidos juntos por alguma forma de interesse comum, dependência mútua, ou status social. Quanto à natureza dos fatores que os mantém unidos, e a relação entre esses fatores e o processo cismogênico, nada sabemos. 

Outro fator necessário para a cismogênese já foi mencionado, mas assume especial importância nesses contextos psicológicos. Afirmei (p. 219) que, se o comportamento de A “é culturalmente rotulado de padrão assertivo, ao passo que o de B se espera que responda a isso com o que é culturalmente visto como submissão”, podemos esperar que ocorra cismogênese. O aspecto etológico do comportamento é fundamental para a cismogênese, e temos de considerar não tanto o conteúdo do comportamento, mas a ênfase emocional da qual é dotado em seu contexto cultural. 

Se A dá a B um objeto, e B o recebe, esses atos podem ser vistos, segundo seu contexto, como: a) triunfo de A, atitude que pode levar seja à cismogênese simétrica do tipo “potlatch”, seja a alguma forma de cismogênese complementar caso a assimetria se perpetue; b) triunfo de B, atitude que pode levar a uma cismogênese nas linhas gerais da rivalidade comercial; ou c) triunfo de nenhum dos dois – tanto dar como receber podem ser vistos como expressões de sua mútua amizade, e sua continuação poderia levar não à cismogênese, mas, antes, a uma maior união entre A e B. 

Quando tratamos de cismogênese entre dois indivíduos ou grupos de indivíduos separados, fica claro ser necessário considerar a ênfase etológica uma condição necessária da cismogênese. Mas a questão se torna mais difícil quando consideramos a cismogênese no interior de uma mesma personalidade. É provável que seja necessário postular uma condição análoga à “ênfase etológica” para uma tal cismogênese interna, mas não é claro como isso pode ser formulado sem que se personifiquem indevidamente os elementos separados da personalidade múltipla – um problema para ser resolvido pelos psiquiatras. 

3. Nos contatos culturais. Já tracei, alhures, um esboço de como considerações derivadas do conceito de cismogênese deveriam ser aplicadas ao estudo do contato cultural7. Em minha opinião, deveríamos ver o fenômeno do contato como uma série de passos partindo de um ponto em que dois grupos de indivíduos, com culturas inteiramente diferentes, entram em contato. O processo pode terminar de várias maneiras, e os resultados finais teoricamente possíveis podem ser enumerados: a) completa fusão entre os dois grupos; b) eliminação de um ou de ambos os grupos; c) persistência de ambos os grupos em equilíbrio dinâmico como grupos diferenciados no interior de uma mesma comunidade maior. 

No início do contato, todavia, ao menos quando se trata do contato entre europeus e povos “primitivos”, não se pode esperar encontrar uma relação simples entre o ethos de um grupo e o do outro. Mas suspeito que, em um período bastante curto, os indivíduos de cada grupo adotem normas especiais de comportamento em seus contatos com indivíduos do outro grupo, e que essas normas especiais de contato possam ser classificadas em termos de padrões complementares ou simétricos. 

Esse fenômeno é claramente visível, na Nova Guiné, no comportamento que os europeus adotam com respeito aos nativos, e vice-versa. Centenas de culturas diferentes, com grande diversidade de ethos entre elas, estiveram envolvidas nesse contato cultural, e, ainda assim, um fato salta aos olhos do antropólogo tão logo pise no país: o residente europeu médio acredita que os nativos da Nova Guiné são notavelmente similares em todos os cantos do país. O residente reconhecerá que alguns são melhores trabalhadores, e outros mais corajosos, mas de modo geral sua opinião é de que um coon [um “preto”] é basicamente igual ao outro. A base desta opinião deve, acredito, ser buscada no comportamento especial que os nativos adotam em seus tratos com os europeus. Tirando-se diferenças menores, a maioria dos povos da Nova Guiné adotou a mesma tática para lidar com os europeus, e sem dúvida copiaram métodos uns dos outros. 

O pídgin inglês, a língua que se desenvolveu nesse contato cultural, e o sistema de gestos e entonação que praticamente fazem parte dela parecem-me a expressão de um ethos muito definido. A língua tem sua própria cadência e uma flexibilidade especial, que podemos supor adaptada à caricatura do algumas vezes assertivo e sempre imprevisível europeu. Inclino-me mesmo a pensar que o ethos expresso no pídgin é comparável àquele que é caricaturado no “humor-negro” americano8. 

Seja como for, é certo que, para a maioria dos nativos da Nova Guiné, o ethos do pídgin contrasta de modo agudo com o ethos de suas culturas nativas. Isso é sem dúvida uma verdade entre os Iatmul, e o comportamento na casa cerimonial dos que retornaram de períodos de trabalho fora etc. sempre me causou espanto. Parecia-me um comportamento vulgar, diferente dos demais nativos; ainda que rudes e barulhentos, o comportamento deles jamais teve essa qualidade peculiar. Penso que os nativos que nunca tinham trabalhado nas plantações sentiam-se igualmente chocados. 

Todavia, o processo pelo qual dois grupos, cujas culturas respectivas são mutuamente irrelevantes, desenvolvem uma relação, simétrica ou complementar, em termos de um comportamento que não é normal para nenhum dos dois nunca foi investigado. Isso poderia nos fornecer pistas sobre o processo de estabelecimento de pares cismogênicos. 

Uma vez que padrões complementares estejam estabelecidos, acredito que a cismogênese subseqüente seja responsável por muitas das antipatias e mal-entendidos que ocorrem entre grupos em contato. Lado a lado com a divergência etológica, encontramos o desenvolvimento de premissas que conferem permanência e fixidez à separação. Mas não é claro o quanto essas formulações, de “barreira de cor”, “antipatia racial” e evitação mútua, contribuem para a promoção da cismogênese. É possível que algumas delas a impeçam de ir longe demais. Esses são problemas que requerem investigação. 

No fim, os dois grupos alcançam um dos resultados finais listados acima. Destes, podemos ignorar os dois primeiros, considerando apenas a persistência de ambos os grupos em equilíbrio dinâmico, uma relação na qual as tendências à cismogênese são adequadamente controladas ou contrariadas por outros processos sociais. Esse resultado final é claramente análogo ao estado de coisas que existe, em uma comunidade primitiva, entre quaisquer dois grupos diferenciados, e é provável que o estudo de tal equilíbrio, como aqueles entre as metades iniciatórias ou os sexos na sociedade iatmul, aumente nosso conhecimento sobre isso, permitindo o manejo dos problemas de contato cultural com maior compreensão dos fatos. 

4. Na política. No presente estado perturbado e instável da política na Europa, há duas cismogêneses que se destacam visivelmente: a) cismogênese simétrica nas rivalidades internacionais; e b) cismogênese complementar da “guerra de classes”. Aqui, outra vez, como nos demais contextos em que discutimos a cismogênese, a evolução progressiva do comportamento no sentido de uma diferenciação e oposição mútuas cada vez maiores é evidente, e nossos políticos parecem tão incapazes de lidar com o processo quanto o é o esquizóide de ajustar-se à realidade. 

Um terceiro tipo de cismogênese tem alguma importância local, a saber, o processo pelo qual ditadores são impelidos a um estado que, para o restante do mundo, parece quase psicopata. Esta é uma cismogênese complementar entre o ditador de um lado, seus oficiais e povo de outro. Ela ilustra muito claramente como o megalomaníaco ou paranóide força os outros a responder à sua condição, e assim é automaticamente empurrado para um desajuste cada vez mais extremo. 

Essas vastas e confusas cismogêneses são exercitadas em circunstâncias tão complicadas que dificilmente será possível estudá-las. Mas talvez valha a pena observar em que medida os políticos, em suas políticas, estão reagindo às reações de seus oponentes e em que medida estão prestando atenção nas condições às quais supostamente estão tentando ajustar-se. Pode ser que, quando os processos de cismogênese tiverem sido estudados em outros campos, mais simples, as conclusões desse estudo se mostrem aplicáveis no âmbito da política.


O PROGRESSO E O CONTROLE DA CISMOGÊNESE


Na ausência de qualquer material cuidadosamente coletado que pudesse mostrar o progresso da cismogênese em um caso determinado, posso apenas oferecer minha opinião sobre os estágios prováveis desse progresso. Em primeiro lugar, quando uma relação complementar ou simétrica é inicialmente estabelecida, é provável que os padrões de comportamento adotados pelos dois indivíduos ou grupos pareçam a ambas as partes uma resposta satisfatória a um difícil problema de relacionamento. Este aparenta ser o caso da adoção do ethos do pídgin inglês pelos nativos da Nova Guiné, e provavelmente o mesmo seria verdade em relação aos estágios iniciais de um casamento cismogênico. No caso de desajustes psicológicos, entretanto, devo deixar os psiquiatras decidirem se a adoção inicial do padrão complementar é um processo adaptativo. 

Se, todavia, um padrão simétrico ou complementar, uma vez adotado, vê-se cada vez mais enfatizado pela cismogênese, é provável que as personalidades dos indivíduos concernidos sofram algum tipo de distorção, com uma hiperespecialização em certa direção: exibicionismo, proteção, asserção, submissão, ou seja lá o que for. Com essa distorção, introduz-se no relacionamento um grau de desconforto, e pode mesmo ocorrer, embora isso requeira verificação, que os indivíduos, tentando encontrar outra vez a resposta que antes se mostrara satisfatória, se especializem ainda mais, de fato, em seus respectivos papéis. 

Mais cedo ou mais tarde, as distorções das personalidades serão provavelmente acompanhadas de três efeitos: a) hostilidade na qual cada parte culpa a outra, como causa de sua própria distorção; b) na cismogênese complementar, ao menos, uma crescente inabilidade em compreender as reações emocionais da outra parte; e c) inveja mútua. 

Em um estágio comparativamente tardio da cismogênese, quando as personalidades dos membros dos dois grupos começaram de modo definitivo a sofrer distorções, o desenvolvimento de inveja mútua é provavelmente comum. A distorção é uma progressiva especialização em certas direções e resulta em um correspondende subdesenvolvimento de outras faces da personalidade. Assim, os membros de cada grupo vêem a parte abortada de sua própria vida afetiva plenamente desenvolvida – na realidade, hiperdesenvolvida – nos membros do grupo oposto. Não apenas os servos invejam os aristocratas, mas os últimos desenvolvem um desagrado por seu próprio ethos e começam a desejar ardentemente uma vida simples. 

Não é fácil julgar o quanto desta inveja mútua encontra-se desenvolvida entre os sexos na cultura iatmul. Certamente, as mulheres obtêm um prazer muito real com a adoção de trajes e maneiras masculinos no naven, e esse fator – leve inveja do ethos masculino – pode ser visto como uma motivação importante na determinação de seu travestismo. Mas não se pode detectar nos homens a inveja correspondente. Externamente, ao menos, desprezam o ethos feminil [womanly], mas não é impossível que tenham alguma inveja inconfessa do mesmo. Seu próprio ethos, em todo caso, não lhes permitiria admitir qualquer coisa positiva nas atitudes das mulheres, e a inveja poderia muito bem ser manifestada em seu desdém com respeito às mulheres – vestindose de roupas femininas para esse propósito9.

É provável que quanto mais as personalidades separadamente evoluam, quanto mais especializadas elas se tornem, mais difícil seja para perceberem o ponto de vista da outra. Por fim, atinge-se um ponto em que as reações de cada parte não constituem mais uma busca pela resposta inicialmente satisfatória, mas são uma simples expressão do desagrado pelo tipo de ajuste emocional ao qual a outra parte foi forçada. As personalidades tornam-se assim mutuamente contra-sugestionáveis. Em lugar de padrões de comportamento originalmente adotados, talvez, em um esforço para ajustarse à outra parte, temos agora padrões que são, definitivamente, uma reação contra a outra parte. Assim a cismogênese toma outra forma, e o relacionamento torna-se cada vez menos estável. 

Se vemos a cismogênese como um processo no qual cada parte reage às reações da outra, então segue-se que a diferenciação deve proceder, mantendo-se o restante inalterado, segundo alguma lei matemática simples, e que a especialização de cada parte em seus padrões particulares de comportamento deve, inclusive, seguir uma curva exponencial se projetada no tempo. Não podemos, porém, esperar obter mensurações acuradas do progresso do fenômeno na maioria dos casos de cismogênese – mas é possível que, em alguns casos relativamente isolados, um detalhe de comportamento sirva de índice do grau de especialização, e deveremos então ser capazes de julgar que tipo de curva ocorre em tal caso. 

Em geral, todavia, não apenas a especialização não é suscetível de mensuração, mas também é provável que o progresso da cismogênese seja modificado pelos mais diversos fatores. Podemos mencionar aqui dois tipos de fator que se pode supor precipitem e acelerem o processo:
 

(a) Um indivíduo vivendo em uma cultura é treinado para ver certos padrões de comportamento como recomendáveis, e outros como errados. Se em uma cismogênese ele é levado a ultrapassar os limites do que é culturalmente aprovado, aquele seu comportamento que ultrapassa esses limites terá provavelmente efeitos desproporcionais, não apenas o fazendo consciente da distorção de sua personalidade, mas também levando a outra parte a respostas hiperdrásticas. Contra isso, porém, é preciso recordar que tabus culturais sobre certos tipos de comportamento podem atuar no sentido de restringir a cismogênese. 

(b) Um segundo fator que pode acelerar o processo é uma tendência a se acreditar que seu resultado será inevitavelmente trágico. A preocupação do indivíduo esquizóide com o destino pode muito bem ser mais que uma percepção de que ele foi capturado por um processo natural: ela pode ser um fator que impulsiona o processo em direção a seu resultado final.
 

O retrado da cismogênese que tracei até aqui é de um processo caminhando inexoravelmente para uma tal diferenciação que se torna inevitável um colapso final, precipitado por algum fator externo. Descrevi o esquizóide como se a degeneração de seu estado em esquizofrenia fosse inevitável. Descrevi a ruptura do casamento em termos que tornam inexplicável que qualquer casamento possa jamais ser bem-sucedido. Comentei ainda sobre as dificuldades do contato cultural em termos que implicam que o equilíbrio final nunca possa ser alcançado. Mas sabemos que, na prática, indivíduos esquizóides podem manter o mesmo grau de desajuste por longos períodos. Conhecemos casamentos que são, às vezes, bem-sucedidos, e que, às vezes, recuperam-se de uma condição instável. É pois necessário pensar a cismogênese não como um processo que avança inexoravelmente, mas, antes, como um processo de mudança que, em alguns casos, é ou controlado ou continuamente contrariado por processos inversos. 

O termo “equilíbrio dinâmico” que apliquei a esses estados balanceados é emprestado do jargão da química – descrever equilíbrios aparentemente estacionários que só podem ser descritos na teoria em termos de duas ou mais reações químicas opostas ocorrrendo simultaneamente. Esse é um sentido comparável a este que atribuo ao termo no presente contexto. A analogia entre o equilíbrio dinâmico que ocorre na sociedade humana e aquele da química não pode, é claro, ser levada muito longe, mas deve servir ao propósito útil de nos lembrar que a posição de equilíbrio pode variar bastante de uma cismogênese para outra, e de uma cultura para outra. Uma condição de oposição mútua que anunciaria desastre para muitos casamentos ingleses pode muito bem ser uma posição de equilíbrio para casamentos em outros cenários culturais; e o equilíbrio encontrado na diferenciação sexual entre os Iatmul, com seus agudos contrastes etológicos, é muito diferente da diferenciação correspondente na Inglaterra. A rivalidade entre metades iniciatórias na sociedade iatmul pareceria estável, mas no estado de coisas em vigor entre essas metades o combate ritual e as brigas constantes são culturalmente normais. 

Devemos esperar encontrar fatores de contenção atuando com forças muito díspares em diferentes contextos da mesma cultura. Mencionei que os padrões complementares culturalmente normais em uma relação entre mãe e filho podem tornar-se, na nossa cultura, base de séria cismogênese quando transportados para a relação entre marido e mulher. Por que esses padrões são perigosos em um contexto e seguros em outros? A resposta estaria ou na presença de fatores de contenção em um caso e sua ausência no outro, ou no fato de que esses padrões de comportamento complementar são culturalmente esperados e, portanto, facilmente tolerados em um relacionamento, ao passo que em outro são rejeitados em algum grau. 

Não dispomos até agora de material coletado que demonstre a existência de tais processos, mas, a partir de nosso conhecimento geral do comportamento humano, é possível dar sugestões quanto à natureza dos fatores que contêm a cismogênese. Esses fatores podem ser classificados em dois grupos principais. Começamos este capítulo com uma consideração dos processos que, ao moldar cada indivíduo segundo o ethos apropriado, tendem a manter o status quo. A partir daí, prosseguimos para considerar a cismogênese como um processo que, se deixado livre para seguir seu curso, traria modificações no status quo. Aqui, outra vez, considerando os fatores que controlam a cismogênese, temos de lidar com alguns cujo único efeito é limitar o progresso da cismogênese, e com outros que, se deixados livres para seguir seu curso, iriam trazer modificações ao status quo. 

Na primeira categoria, os fatores que temos de considerar são processos de moldagem dos indivíduos. Se o menino iatmul é treinado para admirar a aspereza e para ser ele mesmo áspero, ele também é treinado para ver certos extremos de comportamento áspero como repreensíveis. Mais especificamente, ele aprende que esses extremos são perigosos e que outros se vingariam dele se os fosse pôr em prática. Existe um limite superior de tolerância do comportamento assertivo, e é provável que um limite similar de tolerância exista no caso do exibicionismo. 

Em minha descrição do ethos iatmul, falei pouco de seus limites superiores. Para um europeu, as ênfases do ethos masculino iatmul são tão impressionantes que ele não se dá conta facilmente de que o ethos tanto incentiva aspereza a um determinado grau, como impede que se desenvolva para além deste ponto. Existem, porém, indicações no material que coletei que mostram a realidade desse limite superior de tolerância. Mencionei que o indivíduo cuja fotografia (Ilustração 22) oferece a melhor imagem do ethos masculino iatmul era, na realidade, um tanto instável demais para o gosto nativo. Outro exemplo que ilustra a posição do homem que leva longe demais o ethos iatmul pode ser visto na história de Mwaim-nanggur (cf. Oceania, 1932, Ilustração 6). Este herói além de ter um belo nariz, deu origem ao processo de extração do sagu; todas as mulheres o amavam, e, com o humor típico dos Iatmul, ele as dispôs em duas filas, as com pêlo pubiano de um lado e as sem pêlo de outro; copulou, então, com todas elas. Neste ponto, os mecanismos limitantes entraram em ação, e Mwainnanggur foi morto pelos maridos das mulheres. 

Mesmo o sucesso na caça de cabeças pode ser levado longe demais, e Malenembuk, falecido em Palimbai há aproximadamente quatro gerações, ainda é lembrado de forma negativa por, quando na proa de uma canoa de guerra, não ter deixado ninguém vivo para que os outros pudessem matar. 

De modo geral, se a cultura iatmul enfatiza orgulho e aspereza, provê canais para a expressão legítima desse ethos, mas se um homem torna-se excessivamente violento, suas esposas fugirão de casa, seus cunhados se voltarão contra ele, e ele viverá sob a ameaça, talvez, de morte violenta e, com certeza, de feitiçaria. 

Entre os processos que seriam, como a cismogênese, progressivos se sua ação não fosse contida, mas que podem ser balanceados contra esta última, podemos listar os seguintes:
 

1. É possível que, na realidade, nenhuma relação saudável e equilibrada entre dois indivíduos ou grupos seja puramente simétrica ou puramente complementar, mas que toda relação de um desses tipos contenha elementos do outro. É fácil classificar relacionamentos em uma ou outra categoria, conforme sua ênfase predominante, mas é possível que uma pequena pitada de comportamento complementar em uma relação simétrica, ou vice-versa, contribua muito para a estabilização da posição. Por exemplo, o fidalgo encontra-se em uma relação predominantemente complementar e nem sempre confortável com seus aldeões, mas se ele participa no críquete da aldeia (rivalidade simétrica), uma vez por ano que seja, isso pode ter um efeito desproporcional, aliviando a tensão cismogênica do relacionamento. 

Notamos, na cultura iatmul, certa quantidade de pequenas inconsistências no ethos de cada sexo. No caso dos homens, observamos que dois tipos são destacados com aprovação: primeiro e sobretudo, o homem violento, mas também, depois dele, o homem discreto. É possível que a confiança e o apreço que outros indivíduos tenham pelo homem discreto contribuam para uma contracorrente de um ethos quase iatmul-feminil, em termos do qual alguns dos padrões de comportamento entre os sexos possam ser simétricos. Entre as mulheres, vimos ainda mais claramente uma dupla ênfase atravessando seu ethos. Se no cotidiano são joviais e cooperativas, em ocasiões cerimoniais tendem ao ethos orgulhoso dos homens. É certo que elas são então admiradas pelos homens, e tais ocasiões podem ter uma importância considerável na redução da oposição entre os sexos. 

2. É possível que, quando a principal ênfase em um relacionamento cismogênico recai sobre um par complementar de padrões, a administração de padrões complementares de um outro par potencialmente cismogênico venha a deter a primeira cismogênese. Para dar um exemplo hipotético, é provável que, em um casamento no qual haja uma cismogênese complementar baseada no par asserção-submissão, uma doença ou acidente venha deslocar o contraste para outro padrão baseado na proteção e na fragilidade. Isso pode trazer um alívio instantâneo para a tensão cismogênica, mesmo que a cismogênese tenha antes alcançado os limites da tolerância cultural. 

3. De modo similar, uma mudança súbita nos termos de uma rivalidade simétrica pode aliviar a tensão cismogênica. Um exemplo (deste caso assim como daquele do item 2 acima) pode ser visto, na cultura iatmul, no que chamei de desvio da aspereza para a bufonaria. Aqui temos uma mudança súbita nos padrões de comportamento, provocada talvez pela consciência da tensão por parte de um indivíduo. É provável que esta mudança retarde ou reverta imediatamente a cismogênese anterior. 

4. É quase certo que uma cismogênese complementar ou simétrica entre dois grupos possa ser contrariada por fatores que unam os dois grupos, seja por lealdade, seja por oposição a um elemento exterior. Esse elemento pode ser um indivíduo simbólico, um povo inimigo ou uma circunstância bastante impessoal que traga miséria ou satisfação para ambos os grupos da mesma maneira. Exemplos desse processo são bastante comuns: a celebração de um jubileu é útil para reduzir a antipatia cismogênica entre diferentes estratos de uma sociedade; e uma guerra externa é um mecanismo bem conhecido para reviver um nacionalismo abalado por clivagens cismogênicas. Na cultura iatmul, pode-se presumir a ocorrência do mesmo mecanismo. É provável que a guerra de caça de cabeças contra outras comunidades contribua consideravelmente para controlar as cismogêneses entre os sexos e entre as metades iniciatórias; e é possível que, nos dias de hoje, a relação complementar entre nativos e europeus tenha assumido, em alguma medida, funções análogas. 

Mas podemos notar que, onde quer que haja elemento externo, seja uma pessoa, seja uma comunidade, a relação entre esse grupo externo e os dois grupos originais é sempre cismogênica, e essa segunda cismogênese pode ser ainda mais difícil de controlar do que a primeira. 

5. O processo mencionado no item 4 apresenta uma série de problemas, cujas respostas talvez revelem outros mecanismos que controlam a cismogênese. Trata-se dos problemas do efeito de uma cismogênese externa sobre os padrões de comportamento no interior de cada um dos grupos nela envolvidos. O problema pode ser posto de uma forma quase matemática: se o grupo A tem uma relação cismogênica complementar com o grupo B, que relação podemos observar entre os padrões de comportamento que os membros de A exibem em suas interações com B e os padrões de comportamento que eles exibem em suas interações uns com os outros? De modo similar, quais são os padrões de comportamento no interior do grupo B entre indivíduos que, em suas interações com A, exibem padrões complementares àqueles exibidos por A? Deveríamos esperar que, se for permitido que a relação cismogênica entre A e B proceda até um ponto em que ocorra uma distorção marcada, seu comportamento no interior de seus respectivos grupos seja afetado por essa distorção; e, já que a direção da distorção é diferente nos dois grupos, devemos descobrir que, em cada grupo, desenvolveu-se um ethos especial, relacionado de uma maneira simples com os termos do contraste cismogênico. 

Quando o problema é posto dessa maneira, envolve dois outros problemas subsidiários. Primeiro, o do mecanismo de equilíbrio de hierarquias. Em uma série hierárquica, podemos ver cada grau como envolvido em uma relação cismogênica complementar com o grau superior, e em uma outra relação similar com o grau inferior. Podemos supor que a distorção de personalidade causada por essas cismogêneses é, em alguma medida, aliviada pelo fato de que, nos grupos intermediários da série, cada indíviduo é chamado a exibir um conjunto de padrões de comportamento perante os membros dos grupos superiores e um conjunto de padrões complementares perante os membros dos grupos inferiores. Mas essa compensação não é permitida aos membros situados no topo e na base da série, o que leva esses indíviduos a possuir sinais de cismogênese não balanceada. 

O segundo problema está estreitamente relacionado com aquele das hierarquias. Se o comportamento entre indivíduos no interior de cada um dos grupos A e B é uma função do comportamento que cada grupo exibe em sua relação complementar com o outro, o que devemos então dizer da cismogênese que ocorre, não entre indivíduos, mas entre pares isolados de indivíduos? Devemos supor que compensações ocorrem no interior da personalidade de cada um? Além disso, é possível esperar que, quando soubermos como o comportamento entre indivíduos é influenciado pela cismogênese em que está envolvido seu grupo, uma compreensão desse processo nos fornecerá um vocabulário para descrever as compensações que ocorrem no interior do indivíduo?10 6. Dois casos especiais de controle da cismogênese por estímulos externos podem ser mencionados: a) a possibilidade de que, se os indivíduos se tornam conscientes do processo cismogênico no qual estão envolvidos, reajam a isso em lugar de continuar a seguir seus padrões cismogênicos; b) na cultura iatmul, é provável que não apenas a relação cismogênica entre homens e mulheres contribua para o controle da cismogênese simétrica entre as metades iniciatórias, como também que esta última cismogênese seja, em alguma medida, controlada pela orientação da atenção dos homens para os segredos da iniciação. Podemos ver aqui um exemplo complicado envolvendo toda uma série de mecanismos do tipos referidos nos itens 4 e 5. 

7. É possível que, em uma cismogênese complementar, os padrões de comportamento entre os dois grupos envolvidos seja tal que, enquanto cada grupo diverge mais e mais do outro, os membros de cada um também se tornam mais e mais dependentes do comportamento complementar dos membros do outro grupo, de modo que, em algum momento do progresso da cismogênese, se atingirá equilíbrio quando as forças da dependência mútua igualarem a tendência cismogênica. 

8. Por último, é certo que uma cismogênese, além de ser controlada por outras cismogêneses, internas ou externas aos grupos concernidos, pode também ser contrariada por mudanças progressivas inversas no relacionamento entre esses grupos. Esses processos são, assim como as cismogêneses, resultados cumulativos das reações de cada indivíduo às reações dos membros do outro grupo, mas o processo inverso difere da cismogênese quanto à direção da mudança. Em lugar de levar a um aumento da hostilidade mútua, o processo inverso leva, antes, em direção ao amor mútuo. 

Esse processo ocorre não apenas entre grupos mas também em pares de indivíduos; e, em bases teóricas, devemos esperar que se o curso do verdadeiro amor se der sem atropelos, ele seguirá uma curva exponencial

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1. Usaremos aqui a tradução aproximada dos dois termos em inglês (N. E.). 

2.Cf. Sex and Temperament, 1935.

3. É possível que essa ornamentação das crianças seja, em certo sentido, análoga à ornamentação das mulheres, que é uma característica saliente dos Iatmul orientais (cf. nota 1, p. 189).

4. Cf. Man, 1935, p. 199, “Culture Contact and Schismogenesis”. Esse artigo constitui um esboço do problema sociológico apresentado pelo conceito de cismogênese. Não contém quase nenhuma referência aos fenômenos que observei na Nova Guiné.

5. A diferença entre cismogênese complementar e simétrica é estreitamente análoga àquela entre cisma e heresia, em que heresia é o termo para a separação de uma seita religiosa na qual o grupo divergente mantém doutrinas antagônicas àquelas do grupo original, e cisma, o termo usado para a separação de uma seita quando os dois grupos resultantes têm a mesma doutrina, mas se distinguem e competem politicamente. Apesar disso, usei o termo cismogênese para os dois tipos de fenômeno.

6. Excepcionalmente, em nossa cultura, podemos nos deparar com casos em que a relação entre filho e mãe é quase simétrica ou recíproca. Seria interessante saber o quanto esses filhos, em seus casamentos, irão se envolver em cismogêneses complementares do tipo proteção/fragilidade ou exibicionismo/admiração.

7.Cf. Man, 1935, p. 199.

8. O dr. MacCurdy chamou-me a atenção para um detalhe interessante na cismogênese entre negros e brancos na América – o de que os negros do Sul, envolvidos em uma relação cismogênica altamente diferenciada com os brancos do Sul, não se dispõem a aceitar padrões de comportamento por parte dos brancos do Norte que eles esperariam e demandam da parte dos brancos que conhecem. Assim, os padrões de comportamento desenvolvidos em uma cismogênese não podem ser facilmente aplicados em outros contextos, e para uma compreensão do equilíbrio é necessário conhecer muito mais que os meros detalhes do comportamento cismogênico.

9. Agradeço à dra. Karin Stephen, que, a partir de sua experiência psicanalítica na Europa, sugeriu-me esta possibilidade: de que uma inveja inconsciente do ethos feminino possa ser uma das motivações do travestismo dos homens. Tenho muitas dúvidas quanto à admissibilidade de uma tal formulação da questão. Busquei recorrer a referências a emoções apenas onde essa formulação podia ser vista como uma descrição grosseira, improvisada, do comportamento dos indivíduos (ver nota 1, p. 174), e hesito em me permitir expressões que tornariam ambíguas minhas referências “behavioristas” a emoções, insinuando que o comportamento possa ser o reverso daquele primariamente apropriado à emoção. Reconheço que, em geral, teorias de inversão etc. constituem tentativas de expressar uma verdade importante, mas suspeito de que as teorias não possam ser adequadamente provadas ou formuladas até que disponhamos de técnicas para a descrição analítica de gestos, postura etc., e possamos definir as diferenças entre um comportamento direto e um invertido.

10.No caso da cismogênese entre grupos, notamos que uma relação cismogênica com um inimigo externo pode impedir a cismogênese entre classes no interior de uma nação, mas também notamos que a admiração externa pode induzir a uma divisão cismogênica no interior da personalidade de um indivíduo. Isso não é, provavelmente, uma discrepância entre fenômenos individuais e grupais, mas uma indicação de que uma cismogênse externa pode promover uma interna apenas se ambas as separações se dão nos mesmos termos. Uma guerra entre dois Estados capitalistas pode reduzir a cismogênese entre fascistas e comunistas em cada um deles; mas uma guerra com a Rússia, especialmente se posta como uma “guerra contra o comunismo”, pode ter um efeito muito diferente.

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Esse capítulo de 20 páginas é de um livro de 384 páginas, quem desejar o PDF completo me procure

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