Gaiarsa fala de Reich

 


GAIARSA FALA DE REICH
SARA QUENZER MATTHIESEN
Docente do Departamento de Educação Física da UNESP-Rio Claro; Mestre em História e Filosofia da Educação; Doutora em Educação; Pesquisadora na área de Educação Somática; autora de vários artigos e livros.
JOSÉ ÂNGELO GAIARSA
Médico; psicoterapeuta; autor de vários artigos e livros na área de Psicoterapia e Comunicação Não-Verbal.
Resumo: Como um dos principais difusores das idéias de Reich no Brasil, Gaiarsa nos concedeu em março de 2002 uma entrevista relembrando aspectos importantes do pensamento de Reich que muito o influenciou na formulação de seu próprio trabalho no campo da Psicoterapia.
Inspirando-nos no conhecido livro organizado por Higgins; Raphael (1979) intitulado “Reich fala de Freud” traduzido para o português 2 , este texto é resultado de uma entrevista concedida por José Ângelo Gaiarsa nas proximidades do 105o. aniversário de Reich em 2002. Não há novidades no fato de que Gaiarsa foi um dos principais precursores do pensamento de Reich no Brasil. Afinal, livros, tais como, “Reich 1980”, “Couraça muscular do caráter” e “Sexo, Reich e Eu” 3
denunciam esta aproximação que certamente perpassa o conteúdo de seus mais de 30 livros publicados. Sua influência, não apenas no âmbito da Psicoterapia, mas em áreas como a Psiquiatria e a Educação Física foi determinante para a aproximação com as polêmicas idéias do autor austro-húngaro, quer no campo clínico ou social. Mais do que isso, o longo período em que esteve vinculado à mídia televisiva registrou um momento ímpar na difusão de idéias reichianas mescladas às suas próprias. Em particular, nesta entrevista, Gaiarsa remete-se a particularidades de sua aproximação com a obra reichiana, registrando uma história “que não se conta”, repleta de curiosidades e emoções.
Sara Quenzer Matthiesen – É um prazer estar aqui com você para conversarmos sobre o seu trabalho, principalmente por seu papel na inserção do pensamento de Wilhelm Reich no Brasil. Então, as questões estarão direcionadas nesse sentido. Para conhecermos um pouquinho de você e de seu trabalho, eu começaria perguntando a você por que da escolha de Reich em seu trabalho? Seus livros começaram a ser publicados em 70, 80 e vemos o quanto Reich vai crescendo em seu trabalho.
José Ângelo Gaiarsa – É, eu conheci Reich através de um advogado extremamente simpático que vinha às minhas conferências logo depois de eu estar formado e insistia: “Precisa ler Reich, precisa ler Reich”. (...) Acho que ele me deu de presente “A Couraça Muscular” 4. Quando eu comecei a lê-lo, tive uma intuição funda. (...) Estava um pouco entristecido com a psicologia que ignorava o corpo, enquanto eu sou muito visual e muito tátil. Para que estudei 20 anos se não posso nem olhar para a pessoa, nem mexer nela! A pessoa da psicanálise não tem corpo, não respira e não tem olhos ... O que eu faço com esse fantasma? Foi um pouco nesse contexto que Reich disse: “Olha, tem um corpo sim!” “E olha, esse corpo até fala alto se você começar a aprender a linguagem dele”. “E se você quiser, com jeito, pode até começar a mexer”. Foi isso que deu o “clic”... e aí, ele me absorveu durante 10 a 15 anos – sendo muito elástico. Li tudo o que achava de Reich, reli coisas. A “Análise do Caráter”, um livro sob certos aspectos infeliz. É extremamente fundamental, mas usa uma linguagem psicanalítica tão complicada, que a maioria das pessoas pára no meio. O que ele descreve e faz é muito bom. Quando ele usa aquelas estruturas de caráter, desde o pai, a tia, a avó em funil ... ai meu Deus, não dá para acompanhar! Ele ainda tinha o vício da psicanálise e o vício da nomenclatura obscura. Mas eu sabia pular os trechos, e ele, o clínico que descrevia os casos, me deixava babando! “Agora posso olhar”, em primeiro lugar; “agora posso ver”. Eu estava tendo essa autorização. E, com jeito, podia pensar em poder mexer. Isso foi um atrativo fundamental para me prender a Reich e aprofundar o conhecimento.
SQM – Era muito difícil encontrar os livros do Reich naquela época?
JAG – Olha, este meu amigo tinha até “caixas de orgônio”, tinha três na casa dele. Foi me fornecendo tudo, até as revistas de Orgonomia. Não vou jurar, mas acho que quase tudo que li foi ele que me emprestou.
SQM – E dos livros de Reich, qual você considera o mais importante?
JAG – Para mim é a “Análise do Caráter”. Os outros eram periféricos. A carência era minha. Considerava seus livros de muita reflexão social. Eu os olhava meio de esguelha, ainda estava longe disso. Não, não me tocava muito. Eu estava me iniciando na clínica, o que me interessava era a relação eu e você. Tudo isso ficava um pouco longe. A história de Cristo, como é que se chama?
SQM – O assassinato de Cristo.
JAG – Aquele me deixou deprimido durante 6 meses. É muito pesado aquilo. (...)
SQM – É ... Reich escreveu isso no início dos anos 50, numa época em que estava sofrendo muita pressão nos Estados Unidos.
JAG – E a infância dele ... Se há trauma na infância, poucos sofreram tanto quanto ele, você sabe sua história. Quando digo que Reich me fez muito mal é por dois motivos. Um: ele faz uma análise do casamento que me deixou arrasado. Eu casei, era um bom cristão, tinha ideais em ser um grande pai de família, marido perfeito ... Tive um casamento difícil, que eu não teria tido nem coragem nem clareza de criticar, se ele não estivesse me dando toda a munição para destruir o casamento, e me convencesse de que não era eu que era um fracasso. É o casamento que não tem jeito. Você vê? Isto é muito importante com Reich. E me liberou a vida porque também destruiu todos os ideais de infância, de família e de tudo mais. Foi interessante essa história terrível ...
SQM – É por isso que você diz que Reich foi seu guia, seu torturador, seu salvador ... tem toda uma relação aí!
JAG – É, um guia. Mas não a Beatriz. Ele foi um guia para o inferno, compreende? Outro aspecto do qual nem ele se dava conta e eu tive depois que combinar com Jung para entender. O quanto a inconsciência coletiva é cruel, o quanto as pessoas são implacáveis, são ruins, preconceituosas, rígidas. Tudo isso estava implícito, mas eu já estava começando a sentir que a essência da estrutura social se estampa em cada um de nós. Em termos, hoje eu re-pensaria o quanto a família é origem de todos os males, ponto!(risos). E a mãe é o seu pior inimigo! Isso eu não chego a dizer, mas está implícito ... O maior partido conservador do mundo são as mães. O maior partido conservador do mundo! Quando a gente diz isso, todo mundo dá uma olhada e diz: “Puxa, é mesmo!”. Então elas são culpadas, sim, não para a geração da estrutura social, para sua manutenção. Mas tudo vem vindo dele pouco a pouco. Fui assimilando muito devagarinho, ao longo do tempo, no consultório, nos textos, no casamento.
SQM – Você nasceu em 1920, ano em que justamente Reich publica seu primeiro texto, que é “Sobre um caso de transgressão da barreira do incesto”. Coincidentemente, na época em que você estava no curso de Medicina da Universidade de São Paulo, em 1946, Reich inicia um período envolvendo episódios muito difíceis nos Estados Unidos da América. Naquela época da Universidade, já se ouvia algo sobre Reich, sobre seu passado e sobre o que ele vivia?
JAG – Ele era um desconhecido para mim. Não se esqueça que também eu estudei Medicina ao longo de toda a Segunda Guerra Mundial, de 40 a 46. Então havia uma invasão de notícias de guerra. Talvez, seja um dos fatores que apagou os outros interesses. Mas isso é um acréscimo. Na verdade, eu não sabia que Reich existia.
SQM– E como é que você ficou sabendo da morte de Reich?
JAG – Muito depois, lendo revistas dele, lendo bibliografias, muito depois de ter acontecido.
SQM – Em 1957, quando ele faleceu em novembro, no dia 3, você se lembra se houve alguma notícia?
JAG – Tenho a vaga notícia de que apareceu algo assim: “Morreu fulano de tal”, ponto. Mas, nem isso eu garanto.
SQM – Foi como médico, portanto, na Faculdade de Medicina, que Reich começou a se interessar pelas questões relacionadas ao sexo, pelo contato com a psicanálise. Com você foi assim também? Ou esse interesse veio posteriormente?
JAG – Muito depois! Muito indefinido quando me formei. Havia oportunidades para psiquiatras. Cheguei a falar com o irmão de um excelente amigo, que era o diretor do Manicômio Judiciário. André, um grande sujeito. Fui lá perguntar para ele se valia a pena ser psiquiatra, se dava para viver... (risos). Ele foi muito amigo, muito esclarecedor e logo depois me contrataram para trabalhar. Eu não escolhi a psiquiatria, deu certo na hora. Contrataram cinco ou seis colegas de uma vez e eu também. E comecei a trabalhar relativamente bem pago. Aí começou uma historinha e indiretamente ela vai esbarrar aqui. Como tínhamos 40 minutos de viagem, de ida e de volta de trem, claro, éramos colegas, havia muita gente moça, começamos a trocar idéias e formamos um grupo. A maior sorte da minha vida foi que eu nunca fiquei como chefe ou ligado a um mestre. Meu mestre foi um grupo ... Achei isso ótimo! Cada um dava seu palpite, não tinha ninguém dizendo a última
palavra, compreende? Se você tem o chefão lá, você acha que ele sabe. ‘Você’ acha que ele sabe! Mas eu não tive esse chefão para me justificar nem para me absolver. A gente trocava entre iguais. Teve seu preço, mas valeu a pena. Dei graças a Deus depois. Quando me formei, havia ‘uma’ psicanalista em São Paulo, não me lembro o nome dela, no mesmo prédio que eu trabalhava. Havia uma fila interminável. Então nem pensar em fazer psicanálise. Assim, me livrei da Escola! Meu anjo da guarda disse: “Olha, fica com os amigos que você está mais bem acompanhado”. Nesse lado de fora, há muitos mestres. Havia Stekel, injustamente desconhecido e um gênio da liberdade... Dez volumes sobre perturbação das emoções e dos instintos, recheado de casos clínicos em que ele usa todas as explicações do mundo. Não tinha nada de sistemático. Ele despertou em mim um senso de liberdade que foi a coisa mais preciosa que tive na clínica. Não existe a última teoria, boa para todos. Use o que dá, o que puder, conforme a hora, improvise se for o caso, chute com cuidado, mas chute. Era ótimo isso, tanto que ficou até hoje. Ele foi o melhor professor de clínica. Disse: “Fique de olho, vá pensando,
diga o que te vem na cabeça e veja o que acontece”.
SQM – E com Reich, como é que Reich, a Teoria de Reich, lhe ajudou na prática clínica?
JAG – Eu disse a você. Primeiro eu já tinha uma certa sensibilidade para não concordar com isso que: “Quem vê cara não vê coração”. Subconsciente ou inconscientemente – tanto faz – eu sabia que isso era mentira, se é que alguém não sabe, em primeiro lugar. Ah, “mas, ele disfarçou muito bem”... Disfarçou! Eu já tinha muito esse olho. Meu olho bonito, desculpe dizer, acho que tem um pouco a ver com isso. Eu via desde criança, mas não havia ninguém que dissesse: “É, você está vendo e existe”. Reich começou a dizer: “Olha, o que você está vendo existe”. Isso foi outro elo fundamental. Autorizou-me a ver o que eu estava vendo. Então, comecei a entrar nisso. Li duas, três, quatro vezes a “Análise do Caráter”, fui aprendendo a nomenclatura básica e tentando traduzir em termos que o paciente acompanhasse. Foi um período e uma atividade básica da minha formação clínica.
SQM – Você não chegou a conhecer Reich pessoalmente?
JAG – Nem me ocorria! Olha, sou de origem muito humilde. Meus pais eram imigrantes, boa gente, muito simples. Sonhar em sair do Brasil, ver um mestre? Imagine eu, o Zeca, imagine se eu posso fazer uma coisa dessas, compreende? Meus pais se saíram bem no Brasil e tinham alta noção desse fato: “Olhe, fique no seu lugar!” “Dê graças a Deus que o Brasil te educou, mas, ‘slow down’. Não comece a fazer barulho. Não, não faça barulho”. Mal sabiam eles!
SQM – Gaiarsa, são muitas as histórias em torno da ruptura entre Freud e Reich, sobre o afastamento entre eles. Você tem alguma visão particular do que possa ter ocorrido, uma leitura?
JAG – De leve, um pouco divertida. Tenho cartas do Reich para Freud e de Freud para Reich. Existe um livro, não sei se você sabe! Reich era exatamente o que meus pais não queriam que eu fosse, entendeu? “Freud, Freud... olha eu!” Ele [Reich] queria, queria, queria que o mestre olhasse para ele. A meu ver, mestre Freud não gostava muito dele pela interferência sócio-política. Freud não queria complicações sociais. Viveu em um período, de burguesia total, século XIX, começo de século XX. Viena, fofoca de montão! Não estou condenando Freud, mas vamos situá-lo, ele era gente, não é? E eu acho que ele não gostava do Reich, em parte por causa disso. Mas é uma interpretação minha com dados sumários. Achei meio engraçada a briga deles, senti de longe, não tinha nada a ver com aquilo. Refiro-me também à ciumeira de Reich em relação ao Jung, o favorito de Freud.
SQM – As últimas pesquisas de Reich foram muito criticadas, as pesquisas do “Reich americano”, inclusive formaram rumores de que ele teria enlouquecido. Na sua visão isso provavelmente aconteceu?
JAG – Fiz várias caixinhas do Reich, tive várias demonstrações curiosas de que lá havia alguma coisa. Acreditei nele antes que outros começassem a fazer experiências, achava seus textos bem fundamentados, mas muito ousados. Seu chão era um pouco pequeno e ele construía muito em cima. Mas em conjunto eu diria: “É preciso investigar melhor o orgônio, se é verdade ou não, se ajuda ou não, se existe ou não”. Li o relato de autópsia do Reich. Quando morreu, apresentava arteriosclerose avançada. Mentira? Não sei porque! E mais, ele fez algumas coisas no fim da vida que eram francamente delirantes... Achar, por exemplo, que havia vigilância da força aérea americana sobre seu Instituto e tudo o mais. Embora, depois dos 60, com a vida que ele teve, a arteriosclerose não seria surpresa. Não prova que ele tenha sido louco, compreende? Ele pode ter entrado em certa perturbação senil devido à arteriosclerose. Isso é o que eu sei. Continuo a achar que o orgônio precisa ser mais bem examinado. Ele me ajudou muitas vezes em mil coisinhas.
SQM– É, antes de fazer a crítica, é preciso fazer uma pesquisa. Ele sofreu muito com preconceito.
JAG – Ele era quase obsessivo em matéria de pesquisas, super cuidadoso, mas era de construir muito em cima de pouco. Os cientistas não gostam disso, eles querem esse tamanho (gesto de grande) para construir assim (gesto de pequeno). Porque o mundo é governado pelos medíocres, não tem conversa; isso é uma verdade cósmica. E também cientistas são 70% medíocres, ponto. E se aparece um lampejo súbito de inovação, abafa, abafa porque perturba. Isso é universal, não é só na ciência, mas, é também na ciência. Reich era incômodo demais – incômodo é o termo. Aliás, um pouco eu também experimentei isso e em parte por causa dele.
SQM – Era isso que eu ia lhe perguntar. Você consegue ver entre a sua vida, sua teoria e seu trabalho, relações com a vida e a obra de Reich?
JAG – Muito, muito. Socialmente, com toda certeza. De metade a dois terços das minhas críticas sociais pesadas são principalmente sobre a família. Reich, para falar a verdade, e toda a psicanálise. Porque toda a psicanálise é uma crítica à família – se a gente pensar. O que é o “Complexo de Édipo”? É a desgraça de todos. “Complexo de Édipo” é ser papai, mamãe e a criança. Quer dizer, a desgraça de todos é a família autoritária. Mas nem os psicanalistas diziam isso com todas as letras. Eu dizia, com todas as letras. As pessoas não gostam de ver e essa é minha maior charada, ainda hoje e cada vez mais: porque as pessoas não querem ver o que está embaixo do nariz? Não é compreender, não tem nada a ver com
compreender; elas não querem ver e dizer: “É, minha mãe é a melhor pessoa do mundo e a pior pessoa do mundo”, para mim! Quem mais me fez bem foi ela e quem mais me fez mal foi ela! (Pausa)
SQM – Atualmente, vemos o corpo muito aparente na mídia, na televisão; o casamento já não é tão insolúvel como o foi em outros tempos; a questão da educação também teve uma série de modificações. Como Reich é muito crítico em relação a esses aspectos, eu perguntaria se você acha que, em função dessas alterações, a obra de Reich estaria superada?
JAG – Nem de longe. Preciso dizer uma coisa importante, uma crítica fundamental a Reich e, aliás, a dois terços da Psicologia e da Psicanálise: é a negação da relação. Você é o neurótico e eu sou o psiquiatra, tudo o que você faz é fantasma da sua cabeça, você vai pensar que sou eu, mas não sou eu. Eu sou aqui um cara-de-pau (...). Tem que ser um cara-de-pau e ponto. E veja, resumindo a questão: um professor de Psicoterapia, da Faculdade de Guarulhos, segundo relato
de um aluno, começa o curso de Psicoterapia dizendo: “A maior dificuldade do terapeuta é disfarçar as próprias emoções”. A nossa Psicologia é uma mentira de alto a baixo, nesse sentido específico. O terapeuta não tem problemas, ou pior, se ele tem, vai resolvê-lo com o de cima, nunca com o interessado. Você resolve comigo, mas eu resolvo com o de cima. Isso é a própria essência do autoritarismo, compreende? Só os de cima têm autoridade, os de baixo não. Isso é muito ruim na nossa psicologia e é por isso que eu gostei muito de Jung, porque ele é muito pessoal. Isso aqui (gesticula um movimento de vai-e-vem entre as mãos), é uma reação química. Você está na ação e eu também! Se você não mudou nada, é porque eu não mudei nada. Ou interagimos ou não há ação. Esse é meu gosto por mestre Jung. Reich negou a interação. Ele tinha a noção psicanalítica. Dizia: o neurótico projeta, identifica, faz o diabo e eu estou de fora. Isso teve conseqüências diretas na pergunta que você me fez: “O que é que o corpo tem a ver com isso?” É que se você começa a mexer numa pessoa com cuidado, você começa a estabelecer com ela elos emocionais muito importantes. Nosso corpo é tão defendido do toque! Mas se eu começo a te olhar com cuidado, mexer com cuidado, nós começamos a entrar numa relação afetiva, muitas vezes de colorido erótico, potencialmente sexual – de vez em quando. Mas não pode. Então se repete a desigualdade: eu mexo em você, mas você não mexe em mim. Pior ainda! Eu mexo ‘com’ você, mas, você não mexe ‘comigo’. Essa a negação que Reich continuou. Uma frase que eu gosto: hoje em dia o corpo que se vê está elevado às alturas, mas o corpo que se toca continua tão proibido como no tempo dele. É namorado? Então pode mexer um pouco, pode até sexo, mas no “resto” não mexe. Não toca não, porque perturba toda a estrutura social. Isso está implícito em Reich. Se você começa a tocar com jeito, você muda o caráter – que resume sua adaptação social. Então não pode mexer com jeito, tem que mexer nos canais estabelecidos. É passatempo? É. É namorada? É. É amante, É. É esposa? É. Agora, se não é nada disso, não pode. Se você mexe dentro da estrutura, pode. Se você começa realmente a se encantar, a inventar, não pode. Você se torna o pior dos revolucionários! E é tudo Reich puro no fundo. Com quanto mais cuidado você mexe no outro, mais profunda é a sua relação pessoal com ele. Então você começa a romper todos os limites convencionais. Como é cliente e ele é terapeuta, ai não pode. Houve e há uma onda de fofoca sobre mim devida ao fato de eu ter começado a mexer nas pessoas. Mas eu mexia com muito cuidado, como se o corpo fosse sagrado. Observava muito, mexia um pouquinho, perguntava e tudo com um cuidado extremo. Alunos meus em grupo de estudo diziam às vezes: “Gaiarsa, quando você mexe em alguém, você parece estar fazendo um ritual sagrado”. Mas tinha aquela noção: Psicoterapia já é meio suspeita, eu e você, fechados uma hora e falando, falando, falando... Agora, além disso, começa a mexer! Não... Sacanagem! A expressão vai direta. E é isso que o Reich tentou evitar, dizendo: “Olha, eu sou o psiquiatra e você é o neurótico. Não me contamine”. (risos) Eu estou te vendo, mas eu sou invisível! Ele não deu o passo da relação: eu faço, mas você não faz. Eu toco, mas você não! “O que me
toca, me toca”. Eu gosto desta expressão, compreende? Tocou na pele, tocou em mim, não na pele, nem no corpo, tocou em mim, doeu. Ele não entrou por aí – receio? Preconceito? “Psicanalismo”?
SQM – Vimos isso tudo e Reich continua tendo um pensamento atual, não é? Em função disso, por que você acha que nos cursos, principalmente nos cursos de Psicologia, se dá tão pouca atenção ao trabalho que ele desenvolveu, por que ele é pouco conhecido?
JAG – Ele não é pouco conhecido. Ele é negado – junto com o corpo! É assim: não mexa em mim a menos que seja bioenergética agressiva. Sacode, machuca, aperta, faz a pessoa gritar, aí pode. Mas, na verdade, o mais terapêutico dos gestos é o gesto amoroso. E isso não existe na faculdade de Psicologia. Não pode. Como é que pode, você é terapeuta, mulher! Você não pode amar ao seu cliente. No entanto, é o gesto amoroso que desmancha qualquer resistência, – a qualidade amorosa do gesto. Essa não pode... Veja Lowen, o mais bem sucedido dos discípulos de Reich. Tive uma ex-aluna que quis conhecê-lo. Disse ser muito simpático até, boa conversa, depois lhe deu uma apertada de ombros que ela ficou roxa e meio imóvel durante 15 dias. (...)
SQM – Gaiarsa, você escreveu o primeiro prefácio do livro “A Função do orgasmo” na primeira edição da tradução para o português publicada em 1975. Como foi esse episódio? É que este foi um dos primeiros livros traduzidos para o português e hoje é um livro bastante conhecido no Brasil.
JAG – Quem recomendou a tradução fui eu. Uma vez publicado, o livro foi enviado para o Instituto de Reich e veio uma carta de volta dizendo para excluir meu prefácio, porque o texto sagrado do iluminado não podia ser contaminado por mais ninguém. E na segunda edição, não apareceu mais o meu prefácio.
SQM – Na edição que eu tenho, é a Mary Higgins que faz o prefácio, não tem o seu.
JAG – Como é que chama? É uma mulher...
SQM – Mary Boyd Higgins.
JAG – Na carta veio assim: “Olha, você está mudando a Bíblia. Como? Você não é profeta, então, não pode”.
SQM – Eu sabia que foi só a primeira e depois nas outras edições o prefácio foi alterado. Tanto que foi surpresa para mim quando peguei esta primeira edição e vi o seu prefácio e falei: “Mas no meu livro não tem!” Foi uma curiosidade.
JAG – Ela mandou uma carta para a editora proibindo... Fim da liberdade no livro do libertador! (risos). Ainda mais um brasileiro falando isso!
SQM – É, não são muitos os livros de Reich traduzidos para o português. Temos cerca de 15 livros traduzidos. De qualquer forma, eu queria que você falasse um pouco mais sobre isso. Você tem uma obra que ultrapassa isso e com uma linguagem bastante acessível ao público em geral. Você acha que a leitura que você fez de Reich – o ‘seu’ Reich – foi absorvida pelas pessoas?
JAG – Realmente não tenho idéia. Eu sei que nos últimos dois, três anos, vou tendo ecos nas escolas, de que a rapaziada lê um pouco do que eu escrevi e gosta. Não sei o que dizer muito mais do que isso. Não sei dizer... Posso lhe dizer que os direitos autorais de meus livros me rendem R$ 600,00 por mês.
SQM – De todos eles?
JAG – De todos eles... Mas, vão vendendo...
SQM – Gaiarsa, antes da entrevista você falou um pouquinho sobre os programas que você fazia na televisão, falando inclusive de Reich. Você acha que isso ajudou na difusão do pensamento dele? É comum você fazer palestras em Universidades tocando nesse tema, no trabalho de Reich?
JAG – Tive um período longo durante o qual fui absorvido por ele. Conversava Reich, dormia Reich, comia Reich, lia Reich. Fiz muitas palestras a respeito. Criou-se até uma fama que depois começou a me incomodar, porque eu também não gosto de ficar preso num lugar ou em um autor, e continuar sempre naquilo. Agora, o efeito coletivo de minhas falas é difícil de avaliar. Eu tive um programa na TV Bandeirantes durante dez anos, de segunda a sexta feira, cinco minutos todos os dias. Tinha uma audiência média de 400 a 600 mil pessoas. Esse programa deve ter tido bastante influência. Muito das críticas sociais e familiares que eu fazia eram 70% traduzidas diretamente de Reich. É difícil localizar o efeito que teve, qual ou quanto. Acredito que tenha sido bastante.
SQM – É, na Educação Física, seus livros são bastante lidos. Você é uma grande referência no campo da Educação Física. De uns anos para cá, dos anos 80, 90 para cá, tem havido uma leitura na Educação Física agora mais voltada para o que chamamos de Práticas Corporais Alternativas. São trabalhos de abordagem corporal que vêm da clínica terapêutica e que nos vão levando a um outro modo de olhar para o corpo, mais voltado à consciência corporal, ao relaxamento.
JAG – Para uma verdadeira Educação Corporal e não um-dois, um-dois, um-dois...
SQM – Então, é isso que eu queria saber! Você vê isso como um avanço, esse olhar do corpo em uma outra perspectiva?
JAG – Certamente, certamente. Aliás, isso eu também falei em várias escolas de Educação Física. Fiz propaganda naquele período mais ativo. Além de ilustrar as coisas, eu dizia: “Vejam, isso aqui é uma profissão adicional. Vocês podem ser psicólogos sem esse nome, talvez até mais eficientes do que o psicólogo e sem falar em Psicologia”. Cheguei a fazer essa promoção de Reich nas escolas de Educação Física.
SQM – E o que lhe parece o título de “Reich Brasileiro?”
JAG – Não... não ... um filho tem que superar o pai, senão não foi bem educado. E eu tenho o outro, meu “paizão” também. Como estrutura primária de pensamento, Jung me pegou até mais que Reich. Reich me deu – acho que eu disse isso em livros – uma boa caixa de ferramentas para trabalhar com pessoas, inclusive uma profunda compreensão da maldade social. Mas, como... Sei lá, como síntese, perspectiva, direção de vida, Jung foi mais influente.(...).
SQM – Não há como negar o otimismo inerente ao pensamento reichiano. Em seu livro “Reich 1980”, você diz ter sido Reich detentor de um idealismo dos mais ingênuos. Você acha que isso se manteve na obra?
JAG – Totalmente. Ingênuo num sentido muito claro, muito simples. Assim: se você alcança a potência orgástica, você fica maravilhoso. Em primeiro lugar: sabe Deus o que é “potência orgástica”. Segundo: o que na vida, você chegando lá, vai ficar maravilhoso? Essa a ingenuidade, compreende? Bom, se ele dissesse: “Veja, é muito bom, muito importante ir removendo obstáculos, criando uma melhor capacidade de amar”. Beleza! Mas repito, eu não sei o que quer dizer o fim do que quer que seja (Mito do Paraíso). Aliás, a vida erótica de Reich não era lá essas coisas, viu? Ele tem um livro – não consegui lê-lo inteiro – “Recordações de juventude”, no qual ele fala de sexo com a grosseria do machão! (risos). Não sei se me faço entender! Ele não usa palavras feias, chulas, desagradáveis. Mas punha as coisas em termos muito crus, quer dizer: “Trepa que você fica feliz”. É muito pouco para um encontro humano. Veja bem, se o corpo está muito amarrado
– como é que desamarra? E se você desamarra, o que acontece? Você só vai transar melhor? Só isso? Nesse sentido, eu o achei, curiosamente, pouco... pouco amplo, quando em muitas outras áreas ele era muito amplo. Mas aí ele ficou assim limitado. Não sei se não era uma defesa contra o amor, contra ligações pessoais mais amplas, mais variadas, mais profundas. É bem capaz, do jeito que ele era, ciumento demais! A segunda esposa dele – li seu livro – me enregelou. Ela faz uma descrição muito seca da vida comum. Diz mais: quando ela chegou de uma viagem da Europa para os EUA, fechou-se no quarto com ela e ficou o dia inteiro fazendo um interrogatório para saber se ela tinha tido um namorado ou não. Ah... Potência orgástica, o caráter genital, compreende? (risos) Onde? Que bicho é esse? É aí que está a ingenuidade dele ou a má fé também, porque não é por ter sido um grande gênio que ele não tinha má fé, nem imperfeições.
SQM – É uma dificuldade conciliar teoria e prática também, não é?
JAG – Não é por ter uma boa idéia que eu fico perfeito. (...).
SQM – Alguma outra curiosidade da vida de Reich que você gostaria de comentar?
JAG – Essa do ciúme é interessante, é uma das coisas que eu aprendi. E outra, olha como ele esbarrou também nas coisas e não parou nelas. Na “Análise do Caráter”, nem sei qual a edição, acho que a americana... Há um rodapé que é assim: “Recebi uma cliente em certa ocasião que havia feito terapia com um colega, mas ele a havia despachado porque ela lhe havia dito que ele tinha cara de porco”. Diz Reich: “Acontece que eu conheci esse camarada, e ele tinha mesmo cara de porco”. Percebe como ele percebeu que a paciente havia percebido? Mas ele não seguiu em frente. Se ela havia percebido o terapeuta, devia perceber também a Reich! Ele se defendeu com uma “preservação de autoridade”. O superlibertário defendendo o autoritarismo... Contradições da vida!
SQM – Dos vários livros que você escreveu, alguns chamaram mais a minha atenção ou por causa da Educação Física, do futebol ou por estarem relacionados ao trabalho de Reich. “Reich 1980” estaria, esse ano, completando 20 anos. Desde que você o escreveu, como você acha que foi a receptividade das idéias de Reich e das suas próprias idéias no campo brasileiro?
JAG – Fiz palestras em muitas faculdades de Psicologia e fui sentindo a pressão crescente dos alunos exigindo Reich. Isso era muito claro, mas não sei se já se realizou essa pressão – acho até que não. Depois, aquela história: o corpo não pode, compreende? Psicologia não pode ter corpo; sobretudo, não pode ter pele. Não pode, é perigoso! Bonito esse pedaço, não é? Se começa mexendo, depois sabe como é! Então se enterra uma ciência inteira devido a um preconceito grossíssimo, como se a única relação que pudesse existir entre homem e mulher fosse sexual e não houvesse nenhuma outra.
SQM – Mas, então, para concluir podemos dizer que o corpo fala?
JAG – Olha, minha resposta é até que ele grita. O que me passa pela cabeça, vendo televisão, são os corpos torturados dos dois terços de miseráveis da vida. É um desfile monstruoso. Você vê a desgraça coletiva na atitude de cada um. Quer dizer, o cara está esmagado, literalmente esmagado, desfibrado, desvitalizado. Não sobrou nada, sobrou um espantalho. É muito mais fácil se alienar se você fecha os olhos. Esquece até o bem apresentado povo americano – tão invejado! Jung viajou pelos Estados Unidos com Freud. Fizeram palestras lá. Ele definiu o americano com duas palavras. Jung também era bom para descrever pessoas. Ele não explorou isso, mas certamente via bem as pessoas. Disse: o americano é sentimental e brutal. Vá observando filmes. Maravilha! Nossa! Família, filho, festa. Cena seguinte: uma bordoada de esborrachar a cara do outro na parede, chute de qualquer lado. Quase que não há filme americano que não tenha cena não só de luta, mas de uma violência e de uma brutalidade horrorosa. Você fica estarrecido. É pontapé na cara, é um amassar o outro até o fim e continuar amassando... Sentimentais e brutais... Americano é isso! (...).
SQM – Estou muito satisfeita em ter conversado com você. Para mim é um prazer imenso ter conversando sobre o seu trabalho.
JAG – Eu estava vendo! (risos)
SQM – Fico muito feliz, porque sou muito apaixonada pelo pensamento de Reich, apesar dos pontos passíveis de crítica e acho que todo o meu empenho, inclusive agora com a profissão universitária, é tentar difundir o pensamento. E acho que você tem um papel muito importante nesse processo. Para mim foi um prazer!
JAG – Para mim também.
Notas
1. Entrevista concedida por José Ângelo Gaiarsa a Sara Quenzer Matthiesen em São Paulo, em fevereiro de 2002 e transcrita por Natália Gonzalez, graduanda em Educação Física pela UNESP-Rio Claro.
2. HIGGINS, M.; RAPHAEL, C. (Org.). (1979) Reich fala de Freud. Tradução de Bernardo de Sá Nogueira. Lisboa: Moraes.
3. Sobre o assunto ver: GAIARSA, J. A. (1982) Reich 1980. São Paulo: Summus; GAIARSA, J. A. (1984) Couraça muscular do caráter. São Paulo: Summus e GAIARSA, J. A. (1985) Sexo, Reich e Eu. 4a ed. São Paulo: Summus.
4. Gaiarsa refere-se ao livro “Character Analysis” cuja referência em português é: REICH, W. (1933/1995) Análise do caráter. Tradução de Maria Lizette Branco e Maria Manuela Pecegueiro; revisão de Ricardo Amaral do Rego. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes.
5. Gaiarsa refere-se ao “acumulador de orgone”, aparelho utilizado por Reich para fins de pesquisa e terapêutico.
6. Trata-se de: REICH, W. (1953/1982) O assassinato de Cristo: volume um de A peste emocional da humanidade. Tradução de Carlos Ralph Lemos Viana; revisão de Antonia Maria Brandão Cipolla; tradução da introdução e do apêndice de Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Martins Fontes, p. 1-18.
7. A referência completa é: REICH, W. (1920) Über einen Fall Durchbruch der Inzestschranke. Zeitschrift für politische Psychlogie und Sexualökonomie, v. 7, p. 220-226. Também integra a seguinte referência: REICH, W. (1920/1975) A case of puberal breaching of the incest taboo. In: Reich, W. Early writings. Translation of Philip Schmitz. New York: Farrar, Straus and Giroux, v.1, p. 65-72.
8. Gaiarsa refere-se ao livro “Reich fala de Freud”, citado anteriormente.
9. Lê-se: “acumuladores de orgone”.
10.Referimo-nos à 1a edição do livro: REICH, W. (1942/1975) A função do orgasmo: problemas econômicos-sexuais da energia biológica. Tradução de Maria da Glória Novak. São Paulo: Brasiliense.
11.Gaiarsa refere-se ao Wilhelm Reich Museum, situado em Rangeley, Maine, EUA e dirigido por Mary Boyd Higgins.
12.Gaiarsa refere-se ao livro: REICH, W. (1988) Leidenschaft der Jugend: Eine Autobiographie, 1897-1922. Colônia: Kiepenheuer & Witsch, cuja referência em português é: REICH. W. (1988/1996) Paixões de juventude: uma autobiografia – 1897-
1922. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins e Sâmia Rios. São Paulo: Martins Fontes.
13.Sobre o assunto: GAIARSA, J. A. (1979) Futebol 2001. São Paulo: Summus.
Referências Bibliográficas
HIGGINS, M.; RAPHAEL, C. (Org.). (1979) Reich fala de Freud. Tradução de Bernardo de Sá Nogueira. Lisboa: Moraes.

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