Por que falham as vacinas por Nelson Vaz

De saída, esclareço que não argumento contra as vacinas. Eu mesmo fui vacinado contra a covid-19. Mas ser contra o movimento anti-vacinas (anti-anti-vax) não significa que compreendo como funcionam as vacinas e que as considero soluções definitivas para as doenças infecto-contagiosas.

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Uma estimativa recente da Lancet do custo do desenvolvimento de vacinas para doenças epidêmicas concluiu que o licenciamento de uma vacina pode custar bilhões de dólares, demorar  em média 10 anos para se estabelecer e, principalmente, que a probabilidade de fracasso da tentativa chega a 94% (Goulglas et al., 2018)

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Por que falham as vacinas?  Esta tem sido uma pergunta importantíssima na imunologia, mas a considero capciosa porque faz uma suposição que força a dar uma resposta sobre vários pontos ainda obscuros. Na realidade, ela pergunta por que falham estas vacinas que deveriam funcionar.

A pergunta é pasteuriana, tem como base a teoria dos germes, e pressupõe que já explicamos as doenças infecciosas; e que vacinas são maneiras de evita-las (Pasteur, 1878). As vacinas geram mecanismos que dificultam ou impedem o contágio com um agente infeccioso específico e/ou geram mecanismos que facilitam sua eliminação do organismo. Neste modo de ver, o vírus, micróbio ou parasita é a causa direta de lesões aos tecidos e elimina-lo resulta na cura. Além disso, anticorpos específicos são considerados mediadores importantes do efeito preventivo e protetor das vacinas, embora isto não tenha sido comprovado na maioria das situações.

 

Fica ausente desta proposta a figura dos “portadores sãos”, isto é, de organismos que convivem em harmonia com agentes patogênicos para outros organismos da mesma linhagem. Mas a mera existência destes “portadores sãos” invalida o mecanismo patogênico proposto. O contágio não significa adoecer; o “agente” patogênico não trás consigo a gênese do processo. Algo mais acontece que tem a ver com o organismo e precisamos saber do que se trata.

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Grandes diferenças de suscetibilidade individual ao adoecer são aspectos do mesmo problema. Casadeval e Pirofski (2018) identificaram…“11 atributos que, embora não sejam independentes, são suficientemente distintos para serem considerados separadamente na suscetibilidade a doenças infecciosas: microbioma, inóculo, sexo, temperatura, ambiente (environment), idade (age), chance, histórico, imunidade, nutrição e genética. Eles usam a primeira letra de cada um para criar o mnemônico MISTEACHING (ensinando errado). Dizem ainda que a diversidade combinatória entre os 11 atributos possibilita a identificação de "assinaturas" de suscetibilidade.

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O mesmo raciocínio linear, causa-efeito que levou Pasteur a identificar micróbios (germes) como responsáveis pelas doenças infeciosas, aplicado à imunologia aponta a exposição a antígenos como a causa da produção de anticorpos específicos. Por sua vez, a presença de “anticorpos naturais” em organismos não imunizados, ou seja, a produção espontânea de imunoglobulinas que “servem” como anticorpos para um dado antígeno, é um obstáculo a esta ideia “instrutiva”, da mesma maneira que a existência de “portadores sãos” é um obstáculo à teoria dos germes de Pasteur (1878). Mecanismos sistêmicos são alternativas a soluções lineares baseadas em causa e efeito.

 

 

 

O organismo importa

Em um texto de 2005, terapeutas familiares da Escola de Milão, descrevem algo corajoso: eles perguntaram a clientes seus que se beneficiaram do tratamento, o quê, afinal, eles ouviram (dos terapeutas) que os ajudou? E ouvem de seus clientes estórias completamente diferentes das que imaginavam; praticamente nada do que acreditavam ter empregado no tratamento tinha sido relevante (Cecchin et al., 2005). Eles citam exemplos notáveis.

 

Em um Departamento universitário americano, os alunos de mestrado tiveram acesso a uma máquina que poderia ajuda-los com suas dissertações. A máquina só “aprovava” ou “desaprovava” os textos submetidos. O artefato tornou-se um grande sucesso e os estudantes faziam fila para utilizá-lo. Mas a máquina real respondia aleatoriamente às perguntas que lhe eram feitas.

 

Na primeira guerra mundial, um regimento do exército austríaco se perdeu em um vale durante uma tempestade de neve e iriam todos morrer de frio, quando alguém exclamou: “Tenho um mapa!” O mapa foi seguido e o regimento conseguiu sair do vale. Mas o mapa era de outro lugar.

 

Sistemas autônomos

Estes exemplos nos falam da ausência de interações instrutivas e da autonomia dos sistemas. As famílias melhoraram porque algo no discurso dos terapeutas familiares as distraiu e as deslocou de uma conduta doentia que inadvertidamente mantinham cronicamente.  Os estudantes recebiam aqui e ali apoio necessário a continuar, ou a mudar de ideia, e o importante era se julgarem apoiados. O regimento se pôs em marcha guiado por um mapa de outro lugar em vez de permanecer em desespero andando em círculos. Em todos estes exemplos, o mais importante é a dinâmica interna, a autonomia dos sistema em questão.

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Em principio, qualquer animal vertebrado é capaz de “responder” à exposição a antígenos com a produção de anticorpos específicos. Mas em todas as imunizações experimentais, em paralelo ao aparecimento de anticorpos específicos aumentam também imunoglobulinas “inespecíficas”, que se formam com a mesma dinâmica e são frequentemente muito mais abundantes que os anticorpos específicos. Este fenômeno é considerado um “ruído”, uma imprecisão da atividade imunológica, mas nunca há uma correlação bi-unívoca entre antígenos e anticorpos — um anticorpo para cada antígeno. Um mesmo anticorpo reage com muito antígenos com energia variável, e um mesmo antígeno reage com muitos anticorpos diferentes.

 

Não posso explicar ainda como imunoglobulinas (anticorpos) “inespecíficas” são importantes na prevenção ou tratamento de doenças infecciosas. Mas, certamente, a vacinação resulta na produção de múltiplos anticorpos “inespecíficos”, e sei que estes anticorpos são diferentes em cada indivíduo e que eles variam incessantemente.

 

A cura de uma doença infecciosa representa aquilo que na Biologia do Conhecer, de Humberto Maturana (2002) se chamaria de “a recuperação da contínua realização da harmonia da autopoiese molecular” — isto é, dos processos de auto-produção e auto-manutenção do organismo. Embora não lhes possa descrever do que consiste esta “harmonia da autopoiese molecular”, creio que ela existe e sei que é possível detectar e quantificar seus desvios; sei que há “padrões” na atividade imunológica e que estes “padrões” podem ser medidos e sofrem desvios não aleatórios durante estados patológicos.

 

Este não é o entendimento atual, mas posso entender que uma vacina que protege todas as pessoas, ainda assim, atua de maneiras individualmente diferentes em cada pessoa. Como entendidas atualmente, as vacinas são como ordens bioquímicas, comandos aos quais o organismo obedece, ativa os linfócitos adequados, e secreta anticorpos decisivos na proteção. Isto seria determinado pelo antígeno, um processo centrado-no-antígeno. O que proponho é uma visão “centrada-no-organismo” em que há mil e uma maneiras de chegar ao mesmo resultado e onde a proteção resulta de uma dinâmica compatível com a manutenção do organismo, e que é sempre diferente e cambiante em cada organismo.

 

Esta dinâmica inclui milhares de outros anticorpos e linfócitos que não interagem diretamente com o agente infeccioso e seus produtos. A lógica da intervencionista é de que o organismo aprende o que a vacina lhe ensina; a lógica do organismo é de que a vacina resulta em uma perturbação que precisa ser compensada em processos internos. Nesta compensação muitos linfócitos são ativados e muitos outros são inibidos; os padrões de operação do organismo são transitoriamente alterados, mas precisam manter sua coerência com a harmonia da autopoiese; e quando ela é recuperada, o organismo superou esta perturbação. Esta é a cura.

 

Usualmente, há milhares ou milhões de linfócitos pertencentes a “clones” diferentes envolvidos em qualquer atividade imunológica. Uma maneira pela qual a atividade imunológica pode se tornar lesiva é por uma redução de sua diversidade clonal. Reduções na diversidade clonal são conhecidas em imunologia como “expansões oligoclonais” — crescimento de poucos clones. Estas expansões estão associadas a uma enorme variedade de estados patológicos, que variam de formas graves de doenças infecciosas a doenças alérgica e autoimunes, a tipos especiais de imunodeficiêecias congênitas, como a síndrome de Omenn. Uma associação, porém, não é necessariamente causal. Mas creio que estas “expansões oligoclonais” são expressões de mau funcionamento do sistema imune, isto é, de perturbações de sua dinâmica sistêmica. Uma das raras inovações terapêuticas introduzidas na imunologia médica nas ultimas décadas foi o tratamento de doenças de origem desconhecida, como as doenças autoimunes, pela injeção endovenosa (Iv) de altas doses de imunoglobulinas (Ig) conhecida como IvIg. Embora esporádicas, as curas geradas por este tratamento podem ser atribuídas à restauração de uma conectividade perdia.

 

Uma perda de complexidade

Para terminar quero apontar analogias entre esta proposta e a geriatria, onde surgiu a explicação da fragilidade (frailty) do envelhecimento por uma perda de complexidade, feita por Lewis Lipzitz (2003; 2016) e colaboradores (Golberger et al., 2020) que apresentaram uma vasta série de exemplos fisiológicos destas mudanças e demonstraram que as mesmas podem ser analisadas por uma matemática fractal.

 

Bibliografia

Casadevall, A., & Pirofski, L. A. (2018). What Is a Host? Attributes of Individual Susceptibility.                           Infect Immun, 86(2), e00636-00617. doi:10.1128/IAI.00636-17

Cecchin, G., Barbetta, P., & Tofanetti, D. (2005). Who was von Foerster, anyway?

            Kybernetes 34, 330–342.

Golberger, A. L., Peng, -. C. K., & Lipsitz, L. A. (2020). What is physiologic complexity and how does it change with aging and disease? Neurobiology of Aging 23 (2002) 23–26, 23, 23–26.

Gouglas, D., & al., e. (2018). Estimating the cost of vaccine development against epidemic infectious diseases: a cost minimisation study. Lancet - Global Health, 6(12), E1386-E1396,.

Lipsitz, L. A. (2003). In K. Deisboeck, and Kepler, editors. (Ed.), Complex Systems Science in Biomedicine. Amsterdan: Kluwer.

Lipsitz, L. A. (2016). The Real Secret of Youth Is Complexity. Our physiological processes become increasingly simple as we age. Nautilus( “Aging” issue in May, 2016.).

Lipsitz, L. A., & Golberger, A. L. (1992). Loss of 'complexity' and aging. Potential applications of fractals and chaos theory to senescence. JAMA, 267(13), 1806-1809.

Maturana, H. (2002). Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing, 9(3-4), 5-34.

Pasteur, L. (1878). The germ theory and its application to medicine and surgery. Comp. Rend. de l"acad. Sci., 86, 10

Nelson Vaz, 28/08/2021

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Nelson Vaz e Humberto Maturana - copiado de

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