EFEITOS BIFÁSICOS DA AYAHUASCA

 


 EFEITOS BIFÁSICOS DA AYAHUASCA

Foi publicado hoje na revista científica PLOS ONE artigo com os resultados de nosso estudo neurocientífico sobre a ayahuasca. Fruto de pouco mais de quatro anos de intenso e dedicado trabalho, a pesquisa foi conduzida na UNIFESP com financiamento da FAPESP, com cooperações na USP, UFABC, Louisiana State University (EUA) e da University of Auckland (Nova Zelândia). Além da colaboração da União do Vegetal que nos forneceu Hoasca para fins de pesquisa, e de 20 bravos(as) psiconautas experientes no uso da bebida amazônica. Nossos(as) voluntários(as) se disponibilizaram a participar de um processo em um ambiente e com uma proposta que difere em muito dos usos tradicionais, e era bastante desafiadora. Beberam ayahuasca num laboratório universitário, sem canto nem palo santo, sem reza, dança ou fogueira, no meio da conturbada metrópole paulista. E tiveram que usar uma touca que gravava a atividade elétrica de seus cérebros continuamente num notebook próximo a elas. Sentadas em uma poltrona confortável, doaram pequenas quantidades de sangue a cada 25 minutos. Apesar de não ter a fundamental condução dos guias, curandeiros, mestres ou maestros, que fazem trabalhos tão importantes quanto a bebida em si, e de tomarem ayahuasca uma pessoa por vez, foram acompanhados com carinho e cuidado pela equipe científica, nunca sendo deixados sozinhos ou desamparados, e sempre com os baldinhos à disposição… Tudo isso em prol da colaboração dos saberes tradicionais com os saberes científicos e tecnológicos.

Uma pesquisa desse tipo se justifica por várias razões, desde um entendimento mais profundo sobre nossa resposta fisiológica aos compostos químicos presentes na ayahuasca, que nos fornece dados cruciais sobre potenciais terapêuticos e segurança de uso; até informações mais sofisticadas sobre as relações entre cérebro e consciência, o chamado “hard-problem”. Com os resultados dessa jornada aprofundamos e expandimos o conhecimento sobre os efeitos dos componentes moleculares da bebida sagrada, sobre como nossos corpos recebem estas moléculas e que efeitos elas ajudam a desencadear, especialmente no cérebro. Ao minimizarmos as intervenções biomédicas somente ao estritamente necessário e ao adotarmos uma postura observacional, deixando e encorajando que os voluntários passassem a maior parte do tempo de olhos fechados em estado introspectivo, pudemos revelar uma imagem fascinante sobre os efeitos da ayahuasca no cérebro. Este efeito ocorre em duas fases qualitativamente distintas e este perfil bifásico ajuda a explicar contradições de estudos semelhantes feitos anteriormente por outras equipes. Com isso abrimos mais portas para fascinantes investigações futuras sobre os diversos estados de consciência que podem ser alcançados com a bebida amazônica.

Cerca de uma hora após a ingestão da ayahuasca, ocorreram diminuições das ondas alfa (8 a 12 ciclos por segundo), especialmente no córtex temporo-parietal, com uma certa tendência de lateralização para o hemisfério esquerdo. A segunda fase ocorre cerca de uma hora depois (ou seja, cerca de duas horas após a ingestão) e enquanto as ondas alfa foram retornando a um padrão parecido com o que estava antes da ingestão da ayahuasca, os ritmos gama, de frequências muito altas (30 a 100 ciclos por segundo), se intensificaram por quase todo o córtex cerebral, incluindo o córtex frontal. Estas oscilações elétricas em distintas frequências, que ocorrem perpetuamente e simultaneamente em todo o cérebro, são resultado da complexa interação da atividade de bilhões de células cerebrais. E estão relacionadas com todas as funções do cérebro, inclusive os aspectos psicológicos e os estados de consciência. Por exemplo, durante o sono profundo predomina no córtex cerebral uma frequência lenta, de 1 a 4 ciclos por segundo, chamada delta. Enquanto durante a maioria dos sonhos, predomina a frequência teta (4 a 8 ciclos por segundo). Ao caracterizar as principais mudanças nestas frequências de oscilações neurais avançamos na criação de um mapa neurocientífico sobre o estado de consciência desencadeado pela ingestão de ayahuasca.

Há variadas nuances de interpretação para estes dados (e muitos estudos posteriores que podem ser feitos de acordo com cada interpretação, para testas hipóteses específicas). Mas a minha favorita e que discutimos no artigo é de que o ritmo alfa é resultado de atividades inibitórias no cérebro, e o ritmo gama representa atividade neural crucial para a consciência. Quando fechamos os olhos e temos a sensacao de um campo visual escuro, sem imagens, o ritmo alfa se fortalece nas regiões do cérebro que recebem estímulos vindos dos olhos. Ou seja, quando estamos de olhos fechados não apenas a informação que chega dos olhos está ausente, mas as áreas visuais são inibidas por “centros superiores” do córtex, capazes de modular a atividade de áreas sensoriais. E nós temos a experiência subjetiva de um mundo escuro e de ausência de visão. No caso da ayahuasca, encontramos um enfraquecimento dessa inibição em áreas multisensoriais. Ou seja, regiões que estão envolvidas não só com visão, mas com audição, tato, paladar, olfato e também com sensações corpóreas das mais diversas. Faz sentido portanto que esta diminuição de alfa esteja relacionada com o efeito tão comum de experiência de mais sensações e mais estímulos durante o efeito da ayahuasca quando comparado com o estado ordinário de consciência, incluindo as famosas visões de olhos fechados. Já o acelerado gama está relacionado com o que se chama na neurociência de integração. Enquanto áreas diversas do cérebro estão relacionadas a percepções subjetivas distintas, como os cinco sentidos mencionados acima, nossa experiência consciente é unificada. Essa unificação de atividades neurais em áreas anatomicamente distintas ocorre nas oscilações rápidas na frequência gama, que permitem ao cérebro temporariamente juntar as peças de um complexo quebra cabeças de atividade neural. Esse aumento de gama pode ajudar a explicar porque durante a ayahuasca a percepção de sons e imagens, por exemplo, parece se fundir e criar relações peculiares, não perceptíveis durante a consciência ordinária, quando o cérebro tende a organizar a atividade neural relacionada aos cinco sentidos de maneira parcialmente independente. Essa função do gama em unificar ou integrar informações no cérebro é conhecida de longa data, pelo menos desde a obra pioneira do cientista Chileno Francisco Varela. E foi observada em dois indíviduos após tomarem ayahuasca em trabalho do antropólogo Luis Eduardo Luna e colaboradores há uma década. Ao confirmarmos os dados de Luna e colaboradores com nova e mais rigorosa metodologia, com mais pessoas e ao detectarmos a combinação destes efeitos com as reduções em alfa, abrimos portas importantíssimas no entendimento não só dos estados não-ordinários de consciência, mas da teoria neurocientifica sobre a consciência como um todo. Um exemplo é uma teoria proposta recentemente sobre a ação dos psicodélicos que sugere que uma das características principais do cérebro durante o efeito de psicodélicos sejam intensificações do gama. Para Andrew Gallimore, do Japão, que se baseia na influente teoria da informacao integrada, ou IIT (integrated information theory), a mais promissora teoria neurocientífica sobre a consciência, a expansão da consciência com psicodélicos é mesmo possível dentro de uma perspectiva neurocientífica, e provavelmente depende do ritmo gama. Esta expansão da consciência inclui a percepção subjetiva de mais conteúdo, de maior intensidade, incluindo fusões entre os sentidos e possivelmente a experiência subjetiva de intensidades e qualidades não perceptíveis durante a consciência ordinária, como cores mais vívidas e brilhantes e estados emocionais mais intensos do que jamais experienciados fora do estado psicodélico. O gama também tem papel fundamental na teoria da consciência proposta pelo matemático Sir Roger Penrose e pelo anestesiologista Stuart Hameroff. Segundo a teoria deles, oscilações na faixa de 40 ciclos por segundo seriam importantes ao permitir reverberações menores e muito mais aceleradas nos microtúbulos, uma rede de fibras e filamentos que percorre todas as células do nosso corpo – e do cérebro.

Ademais de caracterizar as oscilações e regiões corticais mais importantes no processo neural relacionado à modificação da consciência durante a ayahuasca, fizemos coletas periódicas de sangue para quantificar os princípios ativos da ayahuasca e seus metabólitos. E encontramos que durante a primeira fase a concentração da DMT e da harmina estavam próximas do máximo, sendo que na segunda fase acontecem os picos de harmalina e tetrahidroharmina. Com uma análise estatística sofisticada e inédita, desenvolvida especialmente para este estudo, demonstramos que este efeito bifásico no cérebro esta relacionado à concentração sanguínea de vários componentes do chá. Isto expande a visão científica predominante que foca apenas na famosa DMT. De acordo com este modelo, o papel do cipó é apenas de inibir a digestão da DMT. Mas “ayahuasca” é um dos muitos nomes não só da bebida, mas do cipó jagube ou mariri, catalogado nos anais científicos como Banisteriopsis caapi. Isto revela que, para os povos tradicionais, é o cipó a planta mais importante. E de fato há preparações de ayahuasca feitas somente com o cipó, sem qualquer outra planta. Mas na farmacologia esse quadro foi invertido, dando-se ênfase na psicoatividade da DMT apenas, que não vem do cipó, mas de outras plantas que frequentemente são adicionadas no preparo da bebida, como a rainha no Brasil e Peru (Psychotria viridis) ou a chagropanga na Colômbia (Dyplopteris cabrerana). Mas nossa análise com 10 moléculas (DMT, NMT e DMT-NO; Harmina e harmol; Harmalina e harmalol; THH e THH-OH e também o metabólito serotonérgico IAA) revelou associações importantes entre níveis plasmáticos de DMT, harmina, harmalina e tetraidroharmina, bem como alguns metabólitos como a DMT-NO, e os efeitos cerebrais em alfa e gama em momentos distintos da experiência. Revelamos portanto que a psicoatividade da ayahuasca não pode ser totalmente explicada apenas pelas concentrações de DMT, dando um passo importante para reaproximar o saber científico dos saberes tradicionais.
Descobrimos ainda que a concentração de harmalina (e apenas de harmalina) está correlacionada com o momento em que os voluntários(as) vomitaram. Ou seja, a harmalina desempenha um papel fundamental tanto no cérebro, estando relacionada a intensificação das ondas gama, mas também nos efeitos periféricos da ayahuasca, como o vômito. Isso reforça a idéia de que o vômito tem relações importantes com a experiência psicológica, sendo talvez mais apropriado chamá-lo de purga, termo que reforça a idéia de que ocorre uma associação entre físico e psicológico neste momento da experiência. Esses resultados sobre a harmalina também dão nova importância para as pesquisas pioneiras de Claudio Naranjo, terapeuta Chileno que foi um dos primeiros a estudar ayahuasca desde um ponto de vista médico-científico, nos anos 60. A proposta de Naranjo, de que a harmalina era o principal componente psicoativo da ayahuasca foi, entretanto, quase que totalmente esquecida em prol do foco na DMT a partir dos anos 80. Outro fator importante contra a proposta de Naranjo é que as concentrações de harmalina na ayahuasca são em geral abaixo das doses de harmalina que, sozinha, desencadeiam efeitos psicoativos nítidos, conforme relato subjetivo das pessoas que ingeriram harmalina nos estudos de Naranjo. Mas nunca foi testado o efeito da harmalina combinada com a harmina e a tetraidroharmina, como ocorre na ayahuasca. E então nossos resultados reforçam a idéia de que a harmalina também pode ter contribuições importantes no efeito psicoativo da ayahuasca quando em combinação com as outras beta-carbolinas vindas do cipó. Interessantemente, em quase todos os casos a purga ocorreu após a primeira fase, quando os níveis de DMT estão próximos do máximo que atingem no sangue. Como a elevação da concentração de harmalina no sangue é mais lenta que da DMT e da harmina, vomitar pouco interfere nos efeitos da primeira fase e nas concentrações destas duas moléculas, e ajuda a explicar porque mesmo quem vomita rápido pode ter experiências fortes e profundas. Mas vomitar potencialmente interfere nas concentrações de tetraidroharmina, que é a molécula cujas concentrações sobem mais lentamente, e pode permanecer em circulação por alguns dias, dependendo da capacidade de metabolização de cada indivíduo.

Importante notar ainda que o perfil bifásico foi observado com ingestão de apenas um copo (mas com uma dose grande). Mas sabemos que nos usos rituais é muito frequente os participantes tomarem mais de uma dose, com intervalo de uma hora ou mais. É possível então que nestes casos ocorram variadas combinações de efeitos, como por exemplo a segunda fase de uma primeira dose (aumento de gama) coincidir com a primeira fase de uma segunda dose (diminuição de alfa). Isso potencialmente geraria estados cerebrais (e por correlação, estados de consciência) não observados na pesquisa com apenas uma dose. Isto ajuda a entender porque muitas pessoas relatam que a segunda dose é sempre uma “caixinha de surpresas”, e não apenas a intensificação ou prolongação dos efeitos da primeira toma. Ao depender do perfil metabólico de cada pessoa, do tamanho de cada dose, da proporção destas moléculas na bebida e do intervalo entre elas, pode-se atingir outros estados mesclados entre as duas fases observadas na pesquisa. Some-se a isto as influências ambientais, psicológicas, motivacionais e espirituais e temos uma prática de exploração da consciência que não cabe numa resposta simples e singular sobre qual “o efeito” da ayahuasca.

Do ponto de vista neurocientífico, estas possíveis combinações são muito intrigantes, porque relações entre as frequências alfa e gama no córtex parietal e no frontal estão envolvidas em processos de reavaliação psicológica e emocional. Ou seja, quando fazemos certas formas de introspecção que resultam em ressignificação de eventos emocionais de nossas vidas, estas áreas do cérebro se comunicam através de oscilações elétricas nestas duas faixas de frequência. E estas mesmas frequências e áreas cerebrais estão envolvidas em processos criativos de resolução de problemas. Ou seja, através de nossa pesquisa, a neurociência começa a convergir com o saber ancestral ao reafirmar o potencial da ayahuasca em nutrir a criatividade e o autoconhecimento, facilitando formas de terapia focadas no potencial de cada indíviduo em crescer e se desenvolver de maneira consciente.

Referência: Schenberg EE, Alexandre JFM, Filev R, Cravo AM, Sato JR, Muthukumaraswamy SD, et al. (2015) Acute Biphasic Effects of Ayahuasca. PLoS ONE 10(9): e0137202. doi:10.1371/journal.pone.0137202


Eduardo Schenberg

http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0137202

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