Márcio Borges
Há 54 anos, eu pensei que pudesse mudar tudo que eu via de errado no
mundo com a "revolução ". Entendia por essa palavra sinistra, a
instituição da utopia, do mundo perfeito
de paz e prosperidade, das pessoas alimentadas sadias e felizes, da
plena fartura para todos, dó ócio criativo, da Arte vigorando, teatros,
cinemas, praças e pratos cheios. Puxa vida! eram tão bons sonhos. Eu
hoje sonho e nem lembro. Mas ainda sei que sonhei. Até hoje é isso:
Minhas palavras e sonhos vivem mesmo é na boca dos outros. Minha vida
foi isso o tempo inteiro. Eu colocando palavras e sonhos na boca e dos
outros. Hoje elas voaram pra muito longe de mim, não me pertencem mais.
Ganharam donos, viraram propriedade privada de outros. Mas eu não as
criei por querer. Criei por precisão. Criei para poder. Para poder
vencer, primeiro a pobreza. Depois a dureza e a tristeza. Das almas. Dos
corpos bêbados.
378 canções gravadas depois da primeira, ainda
estou aqui fazendo a mesma coisa, colocando palavras e sonhos na boca
dos outros. Ainda não atingi a maestria - e não menciono isso puxando
elogios - " ah, atingiu sim..." Não atingi mesmo. Minhas letras são
meio toscas, porque eu mesmo sou meio tosco. Cresci na beira do rio
Arrudas, um esgoto a céu aberto. Até nadar naquela porcaria eu nadei.
Peguei xistose, tênia, giardia e outros bichinhos que esqueci o nome,
naquelas brincadeiras de menino moleque. Meu coração sempre bateu mais
forte pelos malditos deserdados desse chão, pelos deselegantes e
maltrapilhos, pelas putas e seus filhos.
Meus versos vindos dessas fontes verdadeiras jamais poderiam ser apenas bonitos, elegantes e bem construídos.
Eu não sou filho de classe média e meu acesso ao "bom-gosto" foi uma
trip radical. Aquele pedaço de Belo Horizonte que ajudei a tornar
famoso, a tal esquina das ruas Paraisópolis com rua Divinópolis, onde eu
morava, ficava no fim do mundo - e mesmo assim o povo da rua fez
abaixo-assinado pra dona Maricota e Salomão pai se mudassem com seus
onze ( doze) filhos maus-elementos, maconheiros, e ainda por cima
músicos. Minha família, brava, resistente, está lá até hoje. Depois
colocaram uma placas de louvores e loas oficiais pros irmãos
maconheiros. Por mim dá na mesma.
Há 160 dias eu estou aqui isolado
na roça. a compor, meditar, escrever, fotografar lua estrela e
passarinho, a conviver com minha mulher e minhas filhas, sentindo falta
dos meus filhos homens, dos netos e dos amigos. Amigos que não ligam.
Amigos impressos nas lendas. A mente apaga tudo. A mente constantemente
mente. Abundantemente. Eu aqui e o tempo passando. Ontem foi domingo,
hoje já é sexta. Amanhã, quarta-feira de novo. Eu quero ver onde isso
acaba. A live de hoje foi ontem. Amanhã ficou pra agora. O tempo
desencontrado, o ser embaralhado. Vejo de longe a insanidade dos
hiper-confiantes sempre sorridentes, que tocam seus negócios, vendem
seus produtos na certeza de um Amanhã com A maiúsculo que jamais lhes
faltará. Os "jovens" enrugados e senis. Os imortais da impermanência, os
iludidos-mores. Sonhos cheios de bolor. Estou cheio dessa gente
sorridente sempre, esses sorrisos de internet. Apesar de tudo, acho que
um dia, depois dessas pesadas purgações que se iniciam, talvez o dia dos
filhos dos meus netos, brote e vigore uma Nova Humanidade, bem
diferente dessa que está acabando. Porque, pensando bem, ninguém merece
esta falta de lógica, esse voo sombrio da ignorância. O Homo Sapiens é
genial, seguiu à risca a ordem dada pela mãe natureza, que é
dadivosa, mas não bondosa. Sobrevivência do mais apto foi o tacape que
bateu mais forte e a flecha que voou mais longe e mais ligeira. Também a
da equipe mais organizada. A união fez a força. A força criou mais
inteligência, que dominou não só o fogo, como criou com as mãos
temperaturas mais altas que a do Sol. Que manda sua voz e sua imagem
para os confins do espaço sem sair do lugar. Que coleta e espalha
informação à velocidade da luz. Inventa para si olhos que vasculham e
enxergam até onde o próprio universo vai.
Mas o lobo do homem, que é
o homem, estupra crianças. Faz a guerra. Trapaceia. Cria milícias. Mata
Marielles. Bate em mulheres. Explode cidades inteiras. Assassina
milhões sem despentear o cabelo. Trai as amizades e põe o dinheiro no
altar, para lucrar todo santo dia. Eu quero ver onde isso acaba.
Márcio Borges, 21 de agosto de 2020
copiado do FB - https://www.facebook.com/photo.php?fbid=3850310291652801&set=a.103295359687665&type=3&theater
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