O corpo fala? por José Ângelo Gaiarsa

(Artigo da conferência a ser apresentada durante o III Congresso Internacional de Educação Física e Motricidade Humana e IX Simpósio Paulista de Educação Física, na cidade de Rio Claro, Estado de São Paulo, Brasil, durante os dias 30 de abril a 3 de maio de 2003.)


Resumo - Se o corpo não falasse a palavra não teria sentido. Seria como a fala de um robô, absolutamente sem expressão. Fala do hemisfério esquerdo! A interpretação do que fosse dito seria tão incerta quanto a interpretação de um texto. Seria pior: no escrito há sinais que indicam inflexões que um robô não reproduziria. Exclamações, vírgulas, interrogações, reticências e mais não são reproduzidas pelo robô. É falso que as palavras têm sempre o mesmo sentido – ou poucos sentidos (os do dicionário). Mais falso ainda que elas serão sempre entendidas do mesmo modo por várias pessoas – de qualquer idade ou classe social, em várias circunstâncias, em várias épocas. Cada ser enfático,pois os preconceitos em contrário são muito fortes: a semântica inteira (o significado das palavras!) depende do não verbal, da expressão do rosto, do tom da voz, dos gestos, da atitude, do tema em discussão, das circunstâncias e dos interlocutores.

Se eu não tivesse aprendido a ver com Wilhelm
Reich o seguinte ensaio não poderia ter sido escrito. Até
então o psicanalista limitava-se a ouvir relatos do
paciente deitado no divã e fora do campo visual do
terapeuta. Este limitava-se a ouvi-lo e a tentar
correlacionar o que ouvia com o momento e com sua
historia a interpretar os relatos. Reich foi o primeiro
que, frente ao silêncio do paciente, começou a observa-
lo e então fez a descoberta do evidente: cada paciente
fica em silêncio a seu modo, em certa atitude, com
certas expressões no rosto...Levado pelo seu
condicionamento como interprete, começou a perceber
que cada modo de estar em silêncio podia significar
tanto quanto uma declaração verbal momento
fundamental de mudança de paradigma!

Não sei de comentaristas ou críticos que se deram
conta do significado dessa mudança no foco da atenção

1 Artigo da conferência a ser apresentada durante o III Congresso
Internacional de Educação Física e Motricidade Humana e IX
Simpósio Paulista de Educação Física, na cidade de Rio Claro, Estado
de São Paulo, Brasil, durante os dias 30 de abril a 3 de maio de 2003.

do terapeuta. A diferença essencial entre Freud e Reich
pode ser resumida assim: Freud apenas ouvia e Reich
começou a olhar para o paciente. Ou também: Freud
limitava-se a ouvir e interpretar a comunicação verbal,
ao passo que Reich passou a ver e a interpretar a
comunicação não-verbal.

A diferença é muito maior de tudo o que se possa
imaginar e é só disso que cuida todo este ensaio.

Minha experiência

Muito do que se segue contraria preconceitos
profundamente enraizados na cultura em qualquer
cultura e na própria ciência. Afirmo, generalizando
achados e análises de Reich, que o inconsciente está
“por fora” é visível; que é impossível disfarçar, que
ninguém esconde nada de ninguém.

As pessoas têm bem pouca familiaridade com seu
aspeto exterior, com suas faces, gestos e atitudes
corporais. Estranham demais sua aparência ao se
verem gravadas em vídeo. Isto é, elas não sabem o
que exprimem ou manifestam corporal e facialmente,


J. A. Gaiarsa
pouco percebem ou sabem de sua Couraça Muscular do
Caráter noção central para Reich.

A Couraça é todo o esforço (muscular) que a pessoa
faz aqui-e-agora afim de não mostrar de disfarçar o que
pretende, o que deseja ou o que sente. Mas paradoxo!
só consegue disfarçar eficazmente para si mesma
porque não se vê. Porque não vê o que está mostrando!

Experiências pessoais

A maior parte das afirmações contidas no texto
estão fundamentadas em duas categorias de
experiências pessoais. Em grupos de estudo fazíamos
“Leitura corporal com auxilio de vídeo”.

Gravávamos em vídeo um dos companheiros
enquanto eu fazia algumas perguntas sobre sua família,
seu passado, profissão, inclinações durante 8 a 10
minutos. Depois filmava sua marcha e sua postura de
frente, nos dois perfis e de costas. Em seguida, gravava
as duas metades do rosto, direita e esquerda e, enfim, a
metade de cima (olhos/fronte) e a de baixo (queixo e
lábios). Projetávamos depois o teipe, várias vezes, em
velocidade normal, em câmara lenta, em câmara
acelerada, quadro a quadro, comentando, ouvindo
pareceres do grupo, fazendo perguntas ao sujeito. Em
casos felizes conseguíamos nessa única hora
reconstituir quase todos os personagens (identificações)
e episódios significativos da vida do companheiro!

A repetição de gestos, faces e atitudes (a Couraça)
tornava-se patente. Esta técnica não existia ao tempo de
Reich e, de outra parte, ela é perfeita para mostrar
“objetivamente,” tudo o que ele descrevia em seus
casos clínicos. Com a vantagem fundamental de poder
repetir a “realidade” de um momento quantas vezes
quisermos, inclusive em câmara lenta, para evidenciar

o que vimos ou o que pretendemos mostrar. Fico
espantado pelo fato deste recurso tão “objetivo!” ser
tão pouco usado em escolas de Psicologia e na
formação de terapeutas.
Além desta experiência havida durante mais de
quatro centenas de horas ao todo, conto com muitos
milhares de horas de observação clínica atenta face-a
face com os clientes. Tenho meio século de consultório
de Psicoterapia, com 6 a 8 horas de atendimento por
dia. De 1955 a 1970 (aproximadamente) li Reich
extensa, atenta e muitas vezes ansiosamente. Precisava
de suas luzes no cotidiano! Dadas as suas noções de
Couraça Muscular e de transferência negativa latente,
apurei acentuadamente minha capacidade de observar
faces e gestos, assim como de ouvir tons de voz (e não
apenas as palavras).

Preciso repetir: o que se segue contraria
frontalmente quase tudo o que aprendemos desde muito
cedo e que nos é repetido constantemente. Ouvimos que
é possível esconder ou disfarçar emoções e intenções,
mascarar o “íntimo.” Ouvimos também que não
podemos acreditar em nossas “intuições” e impressões
quando em diálogo com o outro.

A Ciência, por sua vez, na impossibilidade de fazer
estatísticas e estabelecer padrões nesta área, também
confirma estas dúvidas.

Introdução ao tema central

Falar falar palavras o corpo obviamente não
fala.

Ele é um “infante,” termo que significa
precisamente “que não fala”. A mesma raiz etimológica
deu origem, também, aos termos infância e infantaria o
grupo daqueles que arriscam a vida na batalha mas não
têm o direito de falar. Note-se a semelhança desses
termos.

Falar o corpo não fala, mas é claro que ele se
exprime. Ele sinaliza intenções, mostra emoções,
assume atitudes, faz mil gestos e mil caras. Não faria
nada disso se faze-las não tivesse alguma função.

Estou me referindo é claro à linguagem corporal, a
mais primitiva forma de comunicação entre os animais.
Portanto, se for verdade que “quanto mais antigo mais
profundo,” a linguagem corporal é então o mais
profundo dos meios de comunicação, tanto entre
animais como entre seres humanos. Na certa, é o
fundamento e o complemento da comunicação verbal.

Vantagem evidente da linguagem corporal sobre a
linguagem verbal: além de ser evidente (isto é, visível)
ela é, por isso mesmo, muito veloz, tanto na sinalização
como no mudar os sinais. Rostos humanos podem
mudar de expressão em fração de segundo. Na verdade,
em um décimo de segundo como já foi medido.
Insistindo: nenhuma palavra poderia ser dita em um
décimo de segundo, muito menos uma frase.

As peculiaridades expressivas do tom da voz

O tom da voz faz parte da comunicação não-
verbal sendo, ao mesmo tempo, o próprio corpo das
palavras que são exatamente isso: sons articulados. A
palavra exige que o som seja articulado (é sua
essência), mas a palavra não obriga o som a ser grave
ou agudo, intenso ou suave, vibrante ou surdo, curto ou
longo. Posso cantarolar sem palavras (só som) como
posso dizer as mesmas palavras com músicas vocais
bem diferentes. Ou sem música nenhuma como os
robôs!

E o principal: a palavra é a própria mensageira de
inteligência enquanto o tom da voz é o mensageiro da
emoção-do “coração” diriam muitos.

O peito - Templo da divindade

A voz nasce no peito reunindo em si o espírito (a
palavra) e a alma (a emoção e o sentimento).

Reunindo o pulmão, órgão de nossa relação com o
invisível vital, o ar; e o coração, o motor e relógio da
vida...

Motriz, Set/Dez 2003, Vol.8 n.3, pp. 85 -90


O corpo fala?

Quem vê cara não vê coração

Se o corpo exprime tanto, tão clara e tão
rapidamente, porque se tornou popular a noção: “quem
vê cara não vê coração?” Porque, muito mais e muito
pior, as ciências sociais e a Psicologia ignoram (ou
negam) tão sistematicamente a linguagem corporal?
Pouco e nada li até hoje sobre a influência do olhar nos
relacionamentos humanos, e em dezenas de escolas de
Psicologia espalhadas por todo o Brasil, onde fiz
palestras, nunca ouvi da existência de uma aula sobre a
importância do olhar na comunicação entre as pessoas.

É o olhar que capta a maior parte da comunicação
não verbal do interlocutor, constituída de faces, gestos e
posições corporais. Portanto, negar o olhar é negar o
que ele vê as manifestações corporais que
acompanham as palavras. Negar o olhar é mutilar
irreparavelmente a comunicação o relacionamento entre
as pessoas.

Este fato, bem ponderado, é deveras espantoso, e
terei de dar muitas voltas por muitas áreas a fim de
tornar claro esse paradoxo: porque o mais evidente
(evidente=visível) nos relacionamentos humanos é tão
sistematicamente omitido, ignorado ou ostensivamente
negado? No campo jurídico, caras, gestos e tons de voz
não são aceitos como prova de nada. “Cara de
assassino” ou “cara de ódio” nada significam...

A cegueira frente à evidência

A palavra “evidência” é tão central e figura tantas
vezes nos textos científicos, que a maior parte das
pessoas não se dá conta de que “evidência” significa
“visível”. “Evidente” significa “que pode ser visto”!!!
Nem se dão conta do implícito: se pode ser visto então
existe, é real, é indiscutível...Se não pode ser visto (se
não for evidente) então não existe...

Estranho paradoxo: negamos o olhar e depois
atribuímos a ele principalmente a ele a capacidade de
“decidir” se um fato ou objeto é real ou não!

Vamos começar a desvendar o mistério:

“É crime criticar sua majestade”

Esta frase é um decreto do ano 221 a.C, promulgado
pelo Primeiro Imperador da China, Chi Huang-Ti.

Ele foi o primeiro tirano da China. Tão fácil, depois
desse decreto modelar e de todo explícito, compreender
porque suas Majestades são todas tão perfeitas.

O que cabe a todos nós, simples mortais, é o temor
reverencial e todo o cuidado em jamais dizer o que
estamos vendo na Autoridade. A primeira Autoridade
foi Chi Huang-Ti, e depois o Faraó, o Rei, Bush, Hitler,
Stalin, o Papa, o Capitalista, o Banqueiro, o Industrial,

o Patrão, o Professor Universitário, o Padre, o Juiz, a
Mãe, o Pai...Do personagem social podemos dizer o que
quisermos, mas frente ao indivíduo concreto no qual o
personagem está encarnado jamais. Ninguém ousaria
dizer a João de Deus que ele já está velho demais...
Frente aos poderosos e até frente ao amigo ou à
namorada dizer o que estamos vendo é muito perigoso.

Será que o corpo não fala, ou será que a ninguém
é permitido falar sobre o que o corpo está
“dizendo?”

A versão infantil do imperador

“O Rei está nu”, é frase que se ouve aqui e ali mas
cuja origem é mal conhecida pela maioria.

Certo Reizinho era por demais vaidoso e, ao ouvir
de dois espertalhões que seriam capazes de produzir um
tecido e fazer um traje mágico de indizível beleza,
empenhou 90% do Tesouro Nacional no pagamento da
raridade. O poder mágico do tecido consistia nisso: só
pessoas de extremado bom-gosto conseguiriam vê-lo.
Teares vazios, afã de costurar o inexistente, medidas
inúteis e, ao final da historia o Rei desfilou nu na rua e
todos se maravilhavam frente a tanta beleza. Até que
uma criança disse o que todos estavam vendo- “O Rei
está nu!”. A Historia não diz o que aconteceu depois –
nem com a criança...É crime criticar sua Majestade!

Autoridade da coletividade

Mas não bastava a perfeição de sua Majestade (mais
a ameaça de tortura) para silenciar a...oposição, para
impedir que qualquer um descrevesse para Sua Alteza
suas caras e suas atitudes! O bigodinho de Hitler, por
exemplo! Ou seus gestos de polichinelo espasmódico
ao discursar.

Era preciso que ao medo de todos fosse somada a
fala de todos. Em forma modelar, Howard Bloom
(2000) resumiu o assunto em uma frase: ”A realidade
de cada lugar e de cada época é uma alucinação
coletiva”. Todos são obrigados a ver as mesmas coisas
a dizer que estão vendo as mesmas coisas. E se alguém
disser estar vendo algo que ninguém mais diz estar
vendo, ou é um louco ou um herege...Galileu, por ex.

Harmonia cósmica

Se todos estão vendo as mesmas coisas ou dizendo
que estão vendo e se todos dizem que essas coisas
sempre foram assim, então existimos em um
maravilhoso mundo Newtoniano onde tudo se repete,
ou onde tudo é sempre igual e portanto tudo é
previsível. Ficam excluídas desse modo quaisquer
novidades, surpresas ou inesperados. Segurança
Máxima todos prisioneiros do passado e condenados a
repeti-lo pelos séculos dos séculos. Transferência
Eterna...

A versão erudita diz: a sociedade é essencialmente
conservadora. Mamãe ensina o que é certo e o que é
errado. A Igreja ensina o que é virtude e o que é
pecado. A Lei diz o que é crime e o que é permitido. O
Capitalismo diz que se dá lucro está certo e assim por
diante. As Majestades, pois, são várias: A Coletividade,
a Família, a Escola (o Professor e o Programa), nossas
Sagradas Tradições Sociais e Religiosas, o Patrão, o

Motriz, Set/Dez 2003, Vol.8 n.3, pp. 85 - 90


J. A. Gaiarsa
Trabalho (a sobrevivência) e, por fim, todas as falas dos
papéis/danças/coletivas toda a Liturgia Social. E mais:
todos vigiam a todos para que todos façam “como se
deve”, “como é adequado”!

Força e segurança

A Liturgia da Uniformidade Social existe para
alimentar ao mesmo tempo a ilusão de segurança e a
ilusão da força. Se todos fazem assim e se “sempre se
fez assim” então deve ser verdade e ai de quem não
concordar.

De outra parte, se todos fazemos igual a mesma
dança e a mesma cantoria então cada um sente em si a
força de todos. Somos poderosos e nada poderá nos
vencer! Estaremos seguros (segurança) e seguros
(presos)!

Mas os indivíduos são...evidentemente
(visivelmente!) diferentes uns dos outros, nas
expressões de rosto, nos gestos que fazem, nos olhares,
nos tons de voz. Peçamos a 5 pessoas que digam a
mesma frase e obteremos 5 músicas-gestos-faces
diferentes e cada uma delas, ao dizer as mesmas
palavras estará comunicando 5 significados
diferentes!

Somos sempre diferentes, mas como estamos todos
proibidos de denunciar as diferenças o não-verbal então
apenas ouvimos e repetimos as palavras estas sim,
sempre iguais e ditas sempre do mesmo modo
(preconceitos, condicionamentos, frases feitas, lugares
comuns).

Estou procurando mostrar, insistentemente, que
falar não é apenas emitir sons articulados, mas é
também se pôr, colocar-se, assumir atitude, fazer
gestos, caras. O corpo todo fala.

Como é o começo?

O neonato “dança” faz vários pequenos movimentos
em várias partes do corpo ao som das palavras que lhe
chegam aos ouvidos (associação palavra-movimento do
corpo). Depois, durante dois a 4 ou 5 anos, as palavras
estão, em sua maioria, ligadas a movimentos “na
direção de,” seja movimento apenas dos olhos, seja no
das mãos ou do corpo todo. A resposta dos próximos,
grande parte das vezes, é “não!” E o gesto, o
movimento, se detém ou se transforma em atitude
crônica de contenção.

É assim que é gerada a Couraça Muscular do
Caráter de modo de todo não-verbal ou de todo
corporal.

Comentários esclarecedores

Os estudiosos do comportamento corporal durante o
diálogo com auxílio de vídeo ou filmes criaram a
expressão “micro-expressões” (prefiro “micro-dicas”).
Eles se referem a vários pequenos e rápidos
movimentos que pessoas em diálogo fazem,
sincronizados com o som ou os gestos da fala do outro.

É tanto o sincronismo quando os dois estão
interessados no tema e interessados um no outro que os
eletroencefalogramas sincronizam suas ondas.

Um dos enigmas da leitura corporal com auxílio do
vídeo são essas micro-dicas, cuja duração pode ser de
um décimo de segundo. Difícil acreditar que elas sejam
percebidas pelos interlocutores! Então porque existem?
Qual sua função?

A vida é luta renhida...

Depois que os seres vivos aprenderam a se
alimentar uns dos outros, a nenhum deles é permitido
viver distraído. É preciso estar sempre alerta pois o
encontro vital ou mortal foi se refinando a níveis
inimagináveis. Assisti a um vídeo sobre a caçada da
vida no Discovery Channel, onde os movimentos de
ataque ou fuga eram cronometrados e eram
espantosamente rápidos centésimos e até milésimos de
segundo!

Será que estes fatos não explicam as micro-dicas?
Será que nossas convicções, a de que as expressões
não-verbais nada significam, não faz parte da repressão
socialmente compulsória e de certo modo universal da
agressividade?

O melhor negócio do mundo são pesquisa,
produção, venda e contrabando de armas! No século
XX ocorreram mais de cem conflitos armados. Nos
países em desenvolvimentos é bem sabido um dos
maiores problemas é a violência. Nos EE.UU
também...Será que no cotidiano nada disso existe?
Rivalidade, competição, auto-afirmação, autodefesa,
agressão indireta (verbal!), ironia, pouco-caso,
desprezo, despeito...

Será que nada disso aparece? Ou fizemos um
“gentlemen agreement” de manter tudo isso em
silêncio, de fazer de conta de que nada disso existe, de
nunca dizer o que estamos vendo na face, nos gestos ou
nos tons de voz do outro?

Também o amor é difícil em nosso mundo e
tentamos “disfarça-lo” tanto quanto a agressividade ou

o medo.
Restrições existentes à leitura corporal
proposta

Tanto em Psicologia quanto na vida cotidiana as
afirmações feitas nesse texto são postas seriamente em
dúvida e vou analisar algumas das objeções.

Começo com as científicas. A ciência é estatística e
se de um conjunto de fatos nenhuma estatística pode ser
feita se nenhum “padrão” pode ser isolado ou descrito
aqueles fatos não podem ser considerados científicos.
Hoje há estudos dessa ordem na área das expressões
faciais e com alguns resultados mas na verdade eles não
me interessam como clínico (nem como pessoa). Como
tudo o que é estatístico, neles a individualidade
desaparece por definição!

Motriz, Set/Dez 2003, Vol.8 n.3, pp. 85 -90


O corpo fala?

Poucas realidades psicológicas são tão
evidentemente individualizadas quanto a comunicação
não verbal. Repito: a “mesma” frase dita por 5 pessoas
diferentes comunica 5 significados diferentes. Bem
compreendido este fato ele compromete seriamente a
própria noção de palavra. Segundo a Lingüística, a
lógica e a gramática, é essencial à definição da palavra
a constância de significado. Segundo o Dicionário, a
mesma palavra designa sempre a mesma coisa para
todos. A análise da comunicação não-verbal prova que
essas duas afirmações podem ser seriamente
contestadas.

Leitura corporal com auxílio de gravação em
vídeo

Volto ao tema (leitura corporal) para examina-lo de
outro ângulo. Em grupo como fazíamos um
companheiro era visto por vários outros, cada uma com
sua ótica, o que enriquecia demais o estudo. Porque é
inegável que ninguém vê “tudo” de ninguém e muito
menos a um só exame, ou de uma só vez.

A cada momento ou em cada situação, as pessoas
mostram com maior nitidez uma ou outra de suas
identificações, de seus desejos e de seus disfarces.

Esta variedade de expressões está ligada à
relação entre a pessoa que está sendo vista e a que
está vendo.

Reich, levado pelo autoritarismo da Psicanálise, da
Ciência e da época, omitiu a volta! Quero dizer: se é
verdade que o paciente mostra muito de si nos seus
gesto, faces e atitudes, é igualmente verdade que o
terapeuta (o observador) também mostra!

Esse o dilema: em relação ao não verbal, não há
observador e observado. Os dois são uma coisa e
outra. O que o observador observa (sigamos a
linguagem estabelecida) está inexoravelmente ligado ao
que o observado está vendo nele!

Esse é o nó da questão a negação do relacionamento
inevitável entre dois interlocutores. O terapeuta “deve”
manter uma “atitude neutra.” A imobilidade do
terapeuta (único sentido claro do termo) é percebida
pelo paciente como inacessibilidade, distância,
desinteresse!

Conseqüência: impossível estudar comunicação não
verbal sem reconhecer que o experimentador faz parte e
co-determina o resultado da experiência.

Tivemos que desmontar o átomo para chegar à
mesma conclusão (Princípio de Incerteza, de
Heisemberg)!

Portanto, reformulando e concluindo o que dissemos
até aqui: mostramos todo o nosso íntimo o tempo todo,
mas aspetos especiais se tornam mais evidentes para
certas pessoas em certas circunstâncias ou em certos
ambientes.

Exemplificando de modo esquemático: se me vejo
ante alguém que me parece ameaçador, exaltam-se em
mim (tornam-se mais aparentes) minhas atitudes de
medo, meu “encolhimento”, minha cautela.

Se percebo alguém como acolhedor, desfazem-se
em mim as atitudes de prevenção, me desarmo, me
“entrego.”

Mas tanto o observador quanto o observado é
preciso acentuar mostram habitualmente um
aglomerado de atitudes-intenções simultâneas, o que
pode tornar a “leitura” difícil. Ou difícil a compreensão
das relações pessoais, em geral ou em certo momento.

Estudos de gravações simultâneas de duas pessoas
em diálogo, mostram que elas “dançam” em certa
harmonia sempre que estão se entendendo. Esse fato,
bem “objetivo”(!), pode ser a base da compreensão
espontânea que em certos momentos felizes pode
ocorrer entre duas pessoas (empatia e/ou amor). Pode
explicar, também, certas antipatias igualmente
espontâneas.

Aprendizado fácil

Em grupos de enfermeiras às quais se
demonstravam estes fatos notou-se que, após as aulas,
elas se mostravam excepcionalmente capazes de
perceber rapidamente as expressões umas das outras.
Dado o pequeno número de aulas, ficaram os
experimentadores confusos frente aos resultados.

Posso compreender perfeitamente este fato pois o
mesmo aconteceu nos meus grupos de estudos. As
pessoas sempre souberam ler a expressão não-verbal. É
um conhecimento deveras pré-verbal, instintivo,
primário. Nossa educação nos faz descrer desse
conhecimento (“é proibido criticar sua majestade”...).
Quando, em grupos de estudo, uma “autoridade” afirma
e mostra que essa leitura é natural e evidente, em todos
se reanima o que já sabiam mas que era proibido
acreditar...

Nesse caso, o “professor” (autoridade) não ensinou.
Ele autorizou os alunos a verem o que já estavam
vendo. Anulou o decreto...

O corpo fala?

Espero esteja claro, a esta altura, que o corpo fala e,
ao mesmo tempo, que nós estamos impedidos de ver o
que ele vive falando ou mostrando.

Ouvi-lo e VÊ-LO significa envolver-se e é perigoso.
Compromete todos os valores estabelecidos de distância
formal, social, profissional, preconceituosa ameaça
fazer ruir toda a pirâmide de Poder.

Claro, também, que o segredo manifesto do corpo
que fala até grita é a mais perigosa arma contra o
autoritarismo até hoje dominante. Se nunca posso
criticar sua majestade conclui-se, em boa lógica, que
sua majestade é perfeita!

Mas a perfeição não é só de sua Majestade. É
também de todo o Sistema, de nossos Sagrados valores
Tradicionais e de toda a Liturgia Social, toda ela feita
muito mais para esconder o que é feio do que para
realizar o que seria bom.

Motriz, Set/Dez 2003, Vol.8 n.3, pp. 85 - 90


J. A. Gaiarsa
Guiados por tão excelentes autoridades e em um

mundo tão maravilhoso, para que começar a ver que

não é nada disso?

Os caminhos nem tão secretos da cooperação
humana

“Sob a aparente desordem da cidade
antiga, sempre que ela funcionava a
contento, havia uma ordem maravilhosa
mantendo a segurança nas ruas e a
liberdade da cidade. É uma ordem
complexa. Sua essência é a intimidade no
uso das calçadas, trazendo consigo a
constante sucessão de olhos (textual,
sublinhamento meu). Esta ordem é toda
ela composta de movimento e mudança e
embora seja vida, e não arte, podemos
denomina-la de arte da cidade e
compara-la à dança. Não à dança
simplória de precisão com todos
levantando a perna ao mesmo tempo,
girando em uníssono e inclinando-se em
massa, mas sim a um intrincado balé no
qual todos os indivíduos e grupos de
dançarinos têm papéis distintos que
miraculosamente determinam uns aos
outros, compondo um todo ordenado.”
(Jacobs apud Johnson, 2002, p. 51)

Na página 51 do livro “Emergence,” de Steven
Johnson, encontro o texto citado, proveniente do livro,
“The Death and Life of Great American Cities,” de Jane
Jacobs,Vintage, N.York, 1961. Traduzido por mim.

“Um estudante de graduação, sob a
orientação de Edward T. Hall, escondido
em um carro abandonado, filmou
crianças brincando no pátio de uma
escola na hora do lanche. Gritando,
rindo, correndo e pulando, cada uma
parecia estar fazendo o que queria na
mais completa desordem. Mas uma
análise cuidadosa revelou que o bando se
movia a um mesmo ritmo. Uma menina,
mais ativa do que os demais, percorria
todo o pátio de escola em suas andanças.
Hall e seu estudante perceberam que a
garotinha, sem querer, era a “diretora”
ou a “orquestradora” do grupo.
Buscando, os investigadores encontraram
uma música que se adaptava à cadência
silenciosas. Quando a tocavam e
projetavam o filme, tudo se passava como
se cada garoto estivesse dançando
exatamente como a melodia propunha.
Mas não havia música nenhuma no
pátio! Conclui Hall: Sem perceber
estavam todos se movendo a um ritmo
criado por eles mesmos ...uma corrente
inconsciente de movimentos

sincronizados unia o grupo’.” (Blom,

2000, p.76)

Porque todos combinam seus movimentos sem
querer e sem saber? Porque se todos combinarem, a
dança será uma só e nos sentiremos fortes e seguros.

Porque todos combinam seus movimentos sem
querer e sem saber? Porque estão se vendo,
respondendo uns aos outros, gerando espontaneamente
a dança da solidariedade humana.

Concluindo

Estas duas citações e os fatos lembrados que nos
permitem compreendê-las, nos levam a uma conclusão
animadora. O “Cérebro Global”, em formação continua
desde os primórdios da vida, não é apenas intelectual.
Ele é também emocional, afetivo e motor dançante e
cantante!

Mas para abrir esse caminho era preciso...abrir os
olhos começar a ver o semelhante. Foi a tarefa maior de
Reich. Tanto meu próximo quanto eu nos mostramos
sem perceber que nos mostramos.

Esse ver-mostrar é o concreto da solidariedade
humana.

Será que a Luz está se fazendo? Será que estamos
começando a nos ver a ver o que estamos mostrando
uns para os outros o tempo todo?

Será que sem saber até sem querer estamos
começando a ficar transparentes?

Referências

Blom, H. (2000). Global Brain. Nova York: Willey.

Johnson, S. (2002). Emergence. Penguin Books.


José Ângelo Gaiarsa

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