Normose ou Normopatia
“A normose pode ser considerada como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes. Em outras palavras: que são patogênicas ou letais, executadas sem que os seus autores e atores tenham consciência da natureza patológica.”
~ Pierre Weil
“NORMOSE” [TRECHOS]
Por Pierre Weil
“(…)
A maneira mais simples de fazê-los entender do que se trata será
contando um pouco do que se passou comigo há algumas décadas. Isso nos
levará, ao mesmo tempo, aos aspectos pessoais e sociais que levaram à criação
do conceito de normose. Lembro-me da crise existencial pela qual
passei aos trinta e três anos de idade. Com o conhecimento que tenho
hoje, identifico-a como consequência de uma normose. Foi, tipicamente, a
crise de um normótico que ainda não sabia nada a respeito da normose.
Fazia prosa sem o saber, como diz um jargão popular.
Por
que afirmo que eu era normótico? Minha crise ocorreu por eu ter
procurado ser normal, de ter realizado o que uma sociedade recomendava e
recomenda até hoje sobre o que é ser um homem bem-sucedido. A
sociedade, por meio dos meus pais, moldara um ser humano bem-sucedido
aos trinta e três anos. Um homem de sucesso porque eu tinha tudo: tinha
a minha residência, tinha a minha casa de campo, tinha a minha
piscina, tinha meu cargo na universidade, tinha o meu cargo junto ao
presidente do maior banco da América Latina, tinha o meu consultório,
tinha o meu livro best-seller, tinha entrevista na televisão, tinha,
tinha, tinha, tinha… E minha normose era, justamente, ter. Havia
introjetado toda uma civilização do ter. Eu tinha, tinha tudo e estava
muito infeliz, não era um homem realizado. Conformado a este contexto,
eu acabei tornando-me normótico.
Por
quê? Porque eu segui a norma que me levou à patologia: a patologia
moral – era profundamente infeliz; a patologia social – me divorciei
porque, quando se está infeliz, culpam-se os outros; e uma patologia
orgânica – a separação me levou a fazer um câncer. Então, já temos o
conceito da normose: é o conjunto de hábitos considerados normais e que,
na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade e à doença.
Embora resumida, é a definição que eu tenho seguido até hoje, muito útil
e clara. Para sair da normose, deitei no divã do psicanalista e
resolvi aprender e praticar ioga. Foi numa sessão de ioga que descobri a
relatividade do conceito de normalidade. Vou contar a história, pois é
muito ilustrativa. Todas as quartas-feiras à noite nosso grupo se
reunia e o professor nos fazia relaxar, com música, e meditar. Depois,
cada um relatava a sua experiência. Um dizia: eu vi um ser.
Outro:
eu vi cores. Outro ainda dizia: eu vi formas. Um mais: eu tive uma
inspiração maravilhosa. E, quando chegou minha vez, eu disse: gente! Eu
estou tapado. Eu não estou vendo nada! Isso transcorreu durante um ano.
Foi aí que comecei a observar a relatividade do conceito de
normalidade: nesse grupo, todo mundo tinha visões e eu não. Então, o
grupo era normal e eu era anormal. Lá fora, nos dois milhões de
habitantes de Belo Horizonte, quase ninguém tinha visões. Então, eu era
normal e o grupo era anormal. Foi quando comecei a cogitar sobre a
relatividade do conceito de normalidade.
A fantasia da separatividade
O
estudo da ioga me levou ao hinduísmo, ao budismo e ao conceito de
maia. Constatei que essa nossa maneira de ver as coisas é uma fantasia.
Mais tarde, eu a denominei de fantasia da separatividade.
Quando
criamos a Universidade Holística, ao fazer o estudo da gênese da
destruição da vida no planeta, descobrimos que sua raiz está em que
consideramos a ilusão como normal. É um conceito provido de consenso
social, que pode levar ao suicídio da humanidade. A isso se acrescentou,
então, a noção de consenso: uma crença partilhada por uma maioria.
Os estudos de ioga me levaram a fazer um retiro com lamas tibetanos.
Fui
para esse retiro especialmente para entender por que os tibetanos
insistiam Maia: termo sânscrito, que significa ilusão, em seu sentido
mais geral. tanto no caráter do sonho em nossa vida cotidiana. Ou seja, a
semelhança entre o estado de consciência de vigília e o onírico. E lá
eu aprendi, por mim mesmo, por meio do sonho lúcido, que a nossa vida
cotidiana é como se fosse um sonho. Não tem muita diferença não. E todos
acreditam nesse sonho. Voltamos à noção de normose e de consenso.
Um
dia, em 1986, ao sair do retiro tibetano, Jean-Yves Leloup me convidou
para um simpósio sobre a normalidade, no Centro Internacional de
Saint-Baume. O local era um tipo de universidade holística, com um
ambiente como o da Unipaz, que ele dirigia, no sul da França. Lá se
encontrava e podia ser visitada a gruta onde Maria Madalena se refugiou
depois da passagem de Jesus. E lá, a seu pedido, proferi uma palestra
sobre as anomalias da normalidade.
Então,
surgiu a ideia de que a normalidade podia ser patológica e patogênica.
Todo o seminário versou sobre a definição do que é normal, tarefa nada
fácil. O que é normal, afinal? De qualquer forma, a criação do
conceito de normose nos força a buscar definir o que não o é.
Um conceito que me trabalhou
Fiz
uma experiência em que procurei colecionar todas as atribuições que se
costuma fazer às pessoas julgadas anormais. Por exemplo: você é um
idiota; você é um irresponsável; você é maligno, etc. Fiz uma coleção de
umas trinta ou quarenta epítetos. Em seguida, traduzi-os ao seu
contrário, pensando que, talvez dessa forma, poderia definir o que é
normal. Para surpresa minha, saiu uma lista do que é um santo. Por esse
procedimento empírico, um ser normal seria um santo. Será? Deixo a
ideia para reflexão.
Depois
disso, o conceito de normose ficou me trabalhando porque um conceito
novo nos trabalha. De vez em quando, eu o usava nas palestras. Notei
que, a cada vez que pronunciava a palavra normose, as pessoas riam
muito. Percebi, então, que a reflexão estava mexendo com alguma coisa
fundamental. Inquietava as pessoas. Pouco a pouco me dei conta,
entretanto, que esse é um conceito fundamental em psicologia, em
sociologia, em antropologia, em educação e nas demais disciplinas e
áreas de atuação humana. Mais ainda: evidencia um processo
psicossociológico que ameaça a humanidade e as outras espécies vivas no
planeta Terra. Uma verdadeira fonte de sofrimentos e de tragédias, das
mais diversas proporções. Foi quando realizei uma primeira
classificação das normoses. E continuo descobrindo outras em minhas
reflexões cotidianas.
(…)
A
característica comum a todas as formas de normoses é seu caráter
automático e inconsciente. Podemos falar, no caso, do espírito de
rebanho. A maior parte dos seres humanos, talvez por preguiça e
comodidade, segue o exemplo da maioria. Pertencer à minoria é tornar-se
vulnerável, expor-se à crítica. Por comodismo, as pessoas seguem ou
repetem o que dizem os jornais; já que está impresso, deve estar certo!
Quantas pessoas aderem a uma ideologia, religião ou partido político só
porque está na moda ou para ser bem vistas pelos demais?
Uma
maneira disfarçada de manipular as opiniões e mudar os sistemas de
valores é anunciar que são adotados pela maioria da população. Nesse
sentido, toda normose é uma forma de alienação. Facilita a instalação de
regimes totalitários ou sistemas de dominação.
(…)
A tomada de consciência da normose e de suas causas constitui a verdadeira terapia para a crise contemporânea.”
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